quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Desde ontem decorre na Cinemateca Portuguesa, também integrando e concluíndo o Festival Temps d’Images, um daqueles raros ciclos que colocam efectivas questões de cinema para reflexão: “O cinema à volta das cinco artes – cinco artes à volta do cinema” ou “cinematografia – coreografia”. Programado por Pierre-Marie Goulet e Teresa Garcia, o ciclo propõe uma visão coreográfica do cinema, para além daquela tradicional das sequências dançadas da comédia musical, uma noção pois de figuras de movimento, num confronto inclusive com aproximações maiores à imobilidade.
E ontem mesmo foi apresentado o “Reel 12” dos “Screen Tests”, naquele que afinal foi também um programa Nico, com o seu “test” compilado nesse “reel”, que na catalogação geral é o “screen test 238” e é de resto um dos que mais se afasta do princípio genérico da imobilidade, e dois dos filmes da trilogia que com ela fez Phillipe Garrel, La Cicatrice Intérieure e Athanor.
Augusto M.Seabra
11 de Dezembro de 2007

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

EYES WIDE SHUT de Stanley Kubrick - 15.12.2007


Neste filme tudo está ligado, tudo ressoa, ecoa, se amalgama, se relança até à vertigem. Da primeira imagem, em que a extraordinária Kidman, de costas, deixa cair o vestido, nua, apenas o tempo de um relâmpago ou de um piscar de olhos, empoleirada nos seus sapatos como as figuras da festa que há-de vir, depois escurece e os olhos fecham-se, à última cena, em que se vê o rosto dela de frente, desfeito, formulando o desafio do fazer com, antes que o genérico do filme desfile, por inteiro, ao som da valsa de Chostakovitch. A valsa, e a sua conotação fatalmente vienense, apela para o seu pólo contrário, as notas inquietantes, suspensivas do piano de Ligeti, tal como a luz quente, dourada, sobressaturada do baile apela para e conjura os sons frios cujo expoente máximo é a morgue. Entre estes extremos há toda uma gama cuidada de uma combinação cromática que faz deste filme, na minha opinião, um dos mais belos filmes que podemos ver. (...)
Jean-André Fieschi
in catálogo "cinematografia – coreografia"
Lisboa, Novembro de 2007

MADAME DE... de Max Ophüls - 15.12.2007


(...) Na primeira cena – um plano único – a mão enluvada da Condessa (a mulher do General, Louise, ou Madame de...) é que ditará o movimento: abre a gaveta da caixa de jóias, mais outra caixa, ouve-se ela a murmurar o mais aborrecido é que ele mos deu no dia a seguir ao nosso casamento, ouve-se ela a cantarolar, abre uma primeira porta do armário, uma segunda, uma terceira, a das peles oh não! Recuso-me a ficar sem uma das minhas peles...volta à segunda, deixa cair o seu missal oh, meu Deus, nunca senti tanta falta dele..., apanha-o, pega num chapéu (vemo-la a meio corpo, depois a câmara acompanha-a até ao espelho de Veneza onde aparece pela primeira vez o reflexo do seu rosto, ela ajusta o chapéuzinho, experimenta furtivamente um colar preferia lançar-me à água a separar-me deste riacho, faz o mesmo com a cruz de diamantes oh, adoro-a, dá um suspiro, pega nos brincos e leva-os rapidamente às orelhas, estes são mesmo os que gosto menos, levanta-se, volta a fechar a porta do armário que ficou entreaberta, seguimo-la até descobrirmos o quarto na totalidade, enfia os brincos na bolsa e desaparece pela porta direita, sempre a cantarolar.
Mas, na realidade, um plano de Ophuls é um desafio a qualquer descrição. O movimento, da esquerda para a direita e depois da direita para a esquerda, inclui avanços e recuos, subidas e descidas, paragens e recomeços, mudanças de valor e de ritmo constantes...E este plano de abertura está longe de ser um dos mais complexos do filme. Mas dá o tom. Despoleta a curva inelutável que parte do reflexo das aparências para acabar na pura tragédia, nessa madrugada glacial em que a Condessa desmaia pela última vez.(...)
Jean-André Fieschi
in catálogo "cinematografia – coreografia"
Lisboa Novembro de 2007

LOLA de Jacques Demy - 15.12.2007


(...) Este filme é a síntese de todo o cinema de Demy. Não é um musical nem é um filme sem música: é um musical sem música. Demy quis realizar uma comédia musical à americana, mas não dispunha dos meios necessários. O resultado é uma quase comédia musical, um filme sempre prestes a explodir em canções, sem nunca o fazer, sempre no limiar de um género e de um tipo de cinema aos quais não se integra totalmente. É precisamente isto que faz a sua beleza e a sua densidade.  (...)
Este musical sem música, este filme onde a verdadeira coreografia não está na breve cena de dança, mas nas relações entre os personagens, foi inteiramente rodado em cenários naturais, escolhidos por Demy, em parte por amor à sua cidade natal, em parte pelo que têm de pouco natural. (...)
Lola é a matriz do cinema de Demy e também é o filme em que o seu cinema musical e o seu cinema não musical se cruzam.
             Antonio Rodrigues
            in catálogo "cinematografia – coreografia"
Lisboa Novembro de 2007

LETTRE À FREDDY BUACHE de Jean-Luc Godard - 15.12.2007


(...) O vídeo descreve, decompõe, disseca – e não raras vezes Godard comparou a sua técnica (ou as possibilidades da sua técnica) ao trabalho de Marey ou Muybridge. (...). Nesta ordem de ideias, não deixa de parecer natural que, graças ao vídeo, se possa isolar e descrever o “nascimento do cinema” – esse ritmo que se encontra no movimento da multidão e que serve de ponto de partida para uma ficção. “Nascimento do cinema”: do de Godard, pensemos nas ruas e nos corpos dos seus filmes dos anos 60, e depois nas ruas e corpos dos seus filmes dos anos 80, como os anteriores ordenados segundo uma concepção “coreográfica” da presença e do movimento. (...)
            Luís Miguel Oliveira
in catálogo "cinematografia – coreografia"  
Lisboa Novembro de 2007

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

TEA AND SIMPATHY de Vincente Minnelli - 14.12.2007


Os grandes melodramas realizados por Minnelli no fim dos anos 50 são uma maneira ideal de estudar o poder da coreografia que age no coração do cinema, independentemente da presença da dança como prática social ou artística.(...)
Nos grandes melodramas, a dança só desaparece para vir obcecar o movimento, ao longo de todo o filme. O mundo na sua totalidade é afectado, deformado pelo encanto invisível da dança, toda a encenação é manipulada por um poder coreográfico. (...)
É, em Tea and Sympathy (Chá e Simpatia), para começar, uma coreografia das cores, cuja circulação Minnelli orquestra, numa narrativa paralela à relação entre Tom e Laura: o azul passa da camisa, que o rapaz traz vestida no primeiro plano, para as flores que oferece, mais tarde, à mulher do professor, o amarelo rodeia-o e acompanha-o como cor de Laura, o verde ritma em pinceladas a sua relação cúmplice e amorosa até invadir o campo na floresta. Haveria que estudar a coreografia dos enquadramentos(...) para poder admirar a geometrização das linhas e da colocação dos corpos. O poder coreográfico manifesta-se, igualmente, nos inúmeros planos que parecem ter sido recuperados de uma comédia musical e cuja estilização se teria detido na fronteira da dança. Aquando da pyjama party, à luz de uma fogueira, os rapazes rodeiam Tom, para o humilhar, preservando-o do ritual da iniciação viril: esta espectacular cenografia circular parece preparar um número cantado, mas Minnelli detém a estilização antes da passagem dos gritos para o canto, da briga para a dança. Vestígios de uma cenografia de music-hall afloram, também, nos planos recorrentes em que a turba desportista atravessa o espaço, sobe ou desce as escadas a correr, como um rebanho assustado. A dança exerce os seus poderes mas não se torna realidade. (...)
Cyril Neyrat
in catálogo "cinematografia – coreografia"  
Lisboa Novembro de 2007

ANTÓNIO, UM RAPAZ DE LISBOA de Jorge Silva Melo - 14.12.2007


(...) Que faz ele (Jorge Silva Melo)? Traduz o sentimento de instabilidade universal do mundo. Nós somos acção, somos movimento. Neste filme onde tanto se fala de touradas e toureiros pega a realidade pelos cornos, corre o risco maior de propor outros caminhos para o cinema português. E depois regista ainda, sem insistir, o trabalho da morte. Porque a exuberância matisseana do conjunto, a lembrar – a mim lembra-me sempre – os musicais da MGM e em particular Um dia em Nova York (On the town) e o admirável número de dança de Donald O’ Connor no estúdio de Serenata à Chuva, oculta mal a “ambição da catástrofe” de que fala algures Henry James e que vem regularmente à superfície em tantos momentos da obra teatral e cinematográfica de JSM.  (...)  
António, um rapaz de Lisboa /o filme, assenta em contínuas e cruzadas variações de velocidade do andamento das suas múltiplas personagens - trata-se de um retrato de grupo de jovens adultos à deriva - , das suas correrias à procura de qualquer coisa que as acalme: a droga, por exemplo. Não disse andamento por acaso. Aqui visa-se alto. É em termos de escalas e ritmos, em orquestração que deve falar-se. JSM escolheu medir-se com a música e com a coreografia. No furacão que atravessa o filme, feito do movimento dos actores quase correndo na cidade, ora achatados contra as paredes das ruas, ora descobrindo bruscamente à sua volta a imensa profundidade de um cruzamento ou praça e nessa magnífica abertura inscrevendo novos andamentos e rimas cromáticas, a um vermelho que alguém traz em grande plano vão responder no espaço perspectivo, a diferentes distâncias, outros vermelhos, tudo isto feito com uma segurança e uma ambição muito raras no cinema português.
            Alberto Seixas Santos
            Lisboa,  Novembro  2007

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

TWIN PEAKS - FIRE WALK WITH ME de David Lynch - 13.12.2007

O MEU CASO de Manoel de Oliveira - 13.12.2007


(...) Com seis anos de intervalo, Manoel de Oliveira em O Meu Caso (1986) e David Lynch em Twin Peaks, Fire Walk With Me (1992) trabalharam nesse ponto em que não se sabe se é a imobilidade que tende para a dança ou o inverso. Na primeira parte de O Meu Caso, um homem agitado aparece num palco de teatro, no momento em que sobe o pano. Explica que não faz parte do espectáculo, mas que decidiu tomar de assalto o palco para expor o seu caso, na sua opinião rico de lições para a humanidade. Enquanto se perde em infinitos preâmbulos, um funcionário do teatro vem ter com ele ao palco e suplica-lhe que parta – acabam por lutar um com o outro. Uma actriz muito pintada entra em cena e começa a declamar o texto da peça, antes de se aperceber da presença dos dois intrusos. Zangada por ter sido interrompida, ela interpela-os. Junta-se à confusão o autor da peça, acompanhado pelo resto da trupe e, por fim, até um espectador, antes da cortina baixar com dificuldade.
As asas do Anjo Exterminador de Buñuel adejam por sobre esta farsa inaugural. Cada personagem que entra em cena não volta a sair – pelo menos diante de nós. A fatalidade do não sair do sítio parece, todavia, ter menos a ver com as fronteiras do palco do que com um excesso de instinto territorial de cada protagonista. (...) Condenadas a não sair do sítio, as figuras de O Meu Caso só poderiam, assim, optar  entre calcificação e gesticulações frenéticas. Por outras palavras, ser estátuas (na quarta parte) ou marionetas (nas três primeiras).(...)
Hervé Aubron
in catálogo "cinematografia – coreografia
Lisboa - Novembro de 2007

QUAD I + II de Samuel Beckett e Alain Schneider - 13.12.2007

Quatro actores "stressados" deslocam-se a correr segundo um percurso definido, como no átrio de uma prisão.
No centro do quadrado, um ponto negro que os actores evitam com ansiedade.
Não tem começo, nem fim, como se tratasse de um corte qualquer num processo infinito.

domingo, 2 de dezembro de 2007

ÍNDIA SONG de Marguerite Duras - 12.12.2007


(...) Se o cinema é uma espécie de “presente” revivido a cada projecção, uma “arte do presente” que, passe o pleonasmo, se eterniza perpetuamente, então um filme como Índia Song, que utiliza o som para atirar as suas imagens para o passado, que as faz desfilar como o “filme” fragmentado e assombrado projectado por uma memória alucinada – então Índia Song é o (único?) filme inteiramente conjugado no passado, o filme que vemos sabendo sempre que não estamos lá, e que não estamos agora (e portanto, como diria Duras, o “filme que não vemos”), onde não há nenhuma reconstituição porque nenhum simulacro de presente é possível (ou mataria o filme). (...)
Luís Miguel Oliveira
in catálogo "cinematografia – coreografia
Lisboa - Novembro de 2007

ROSE HOBART de Joseph Cornell - 12.12.2007


A dança ocupa um lugar especial no universo pessoal da obra de Joseph Cornell. As referências à dança clássica, à coreografia e a bailarinas como Fanny Cerrito ou Tamara Toumanova são constantes nas suas colagens, caixas, ilustrações (Cornell trabalhou para a revista Dance Index), igualmente nas entradas do seu diário, nas transcrições escritas dos seus sonhos.Na sua cosmogonia a dança parece ocupar um lugar especial, forma de harmonizar os elementos naturais – as suas bailarinas recortadas vagueiam pelo espaço estelar, complementam as constelações, apaziguam as criaturas nocturnas, animam fantasias marinhas.(...)
No seu filme mais conhecido, Rose Hobart, uma intervenção sobre o corpo do filme de aventuras East of Borneo (1931) de George Melford, Cornell alia o seu interesse pelo coleccionismo e nostalgia à transformação expressiva dos elementos de composição mediada pelo seu interesse e fascínio pela actriz Rose Hobart. O trabalho de selecção das sequências, montagem e rearranjo do filme original processa-se por supressão, redução e repetição. Supressão do som e diálogos do filme (substituídos por uma música que lhe é exterior); redução – retém apenas as imagens do filme em que Rose Hobart aparece e a que acrescenta algumas outras imagens pontuais do filme. (...)
Ricardo Matos Cabo
in catálogo "cinematografia – coreografia
Lisboa - Novembro de 2007

UMA CERTA NOITE de Boris Barnet - 12.12.2007


Em cada enquadramento de Odnazdi Nociu há qualquer coisa que jorra: desde os tiros das metralhadoras na primeira imagem, existe um movimento diagonal ou lateral que o define, atravessando-o. A coreografia está no plano e não, como em Eisenstein, na relação entre planos estáticos (tese levada ao absurdo no esquema dinâmico de Alexandre Nevsky, que confunde o desenho dos enquadramentos, alinhados da esquerda para a direita, com uma curva gráfica.
Deste filme, que Boris Barnet realizou em 1944 nos estúdios de Erevan, na Arménia, longe da frente, o que acima de tudo se recorda é uma imagem ou um momento: uma rapariga, com um vestido esfarrapado, atravessa, apressada, um campo de escombros, com os pés descalços a pisar as pedras aguçadas, e sobe a escada de metal, ao ar livre, de um edifício meio destruído. Ela faz a ligação entre os dois locais deste filme de guerra insólito que conta a ocupação, o massacre e a libertação de uma cidadezinha russa. (...)
Não é excepcional que a resistência soviética à invasão nazi seja incarnada por uma jovem. Godard tinha razão quando lembrava os pés descalços sobre a neve de Zoia (lev Arnstam, 1944), Joana de Arc inspirada numa personagem real; e o Souyouzkinojournal de Vertov e seus colegas é por vezes comentado por vozes femininas suaves e pensativas, ao contrário do alemão estridente do Deutsche Wochenschau.
O que é excepcional é o olhar amoroso que o cineasta pousa sobre a jovem que a luta em nada masculiniza, demasiado frágil para ser tipicamente soviética,tropeçando sob os impropérios, esbofeteada, conspurcada, espancada. A câmara mantém-se sobre ela, sem contar nada, quer ela ria ou chore, quer lave o chão quase de rastos ou corra com passos de dança. Está sozinha perante o mundo, figura de inocência e de coragem, no meio dos velhos, dos bufos, de reféns e de feridos.(...) 
Bernard Eisenschitz
in catálogo "cinematografia – coreografia
Lisboa - Novembro de 2007

GRADIVA ESQUISSE 1 de Raymonde Carasco - 12.12.2007


Gradiva é um filme sobre a gravidade, sobre o tempo aberrante de um movimento intransitivo concentrado no contorno de um gesto - um pé em grande plano que assenta no chão rochoso das ruínas de Pompeia. (...)
Em Gradiva todos os elementos na imagem participam na ideia de coreografia. A velocidade transformada das diversas passagens da imagem revela um mundo paralelo de acontecimentos que inauguram múltiplas intensidades do movimento (num fora-do-movimento como refere a realizadora). A repetição do gesto aumentado, provoca uma sensação de baixo-relevo - o contraste entre as texturas, o pé da jovem (em verdade duas actrizes diferentes) e a rocha das ruínas que pisa, o pó levantado pela dinâmica do gesto, o fremir da erva, o salto heróico do lagarto (que provoca uma verdadeira epifania cinematográfica), provocam uma dinâmica de cada imagem.
Gradiva inaugurou uma obra de cinema fulgurante baseada na serialidade, na exploração de um motivo - o passo, a marcha, a dança -, realizada em parceria com Régis Hebraud sob a égide de Eisenstein e Antonin Artaud, completando um ciclo de filmes realizados no México com os Índios Tarahumaras.

in catálogo "cinematografia – coreografia
Lisboa - Novembro de 2007

sábado, 1 de dezembro de 2007

TROIS JOURS EN GRÈCE de Jean-Daniel Pollet - 11.12.2007

 
Pollet faz parte, com Resnais, dos raros cineastas de quem se pode dizer que inventaram uma qualidade de movimento. Tal como se fala com razão do “travelling à la Resnais”, existe igualmente um “travelling à la Pollet”, que permanecerá a sua herança mais evidente.
Em Trois jours en Grèce, Pollet utiliza várias vezes o travelling linear e regular. Mas o movimento próprio deste filme é de uma terceira espécie, tão longe do deslizamento à distância quanto da agitação do pânico. É um movimento muito mais livre, sinuoso, que serpenteia sem que qualquer obstáculo o detenha, o impeça de avançar. Uma travessia oscilante, uma flutuação ondulada,  que se insinua no mundo e nele desenha arabescos. (...) Um olhar dançado. (...)  Em Trois jours en Grèce, terra e mar parecem confundir-se para uma travessia sensual e suave de paisagens, rurais e urbanas, ao contacto das quais a câmara aprende a dançar.
Uma das sequencias com o steadicam distingue-se como uma das mais belas de toda a obra, uma das mais belas coreografias urbanas da história do cinema. Atenas, à noite, estação do metro Omonia. A câmara sobe as escadas, serpenteia pelos subterrâneos, ao longo dos carris, do metro no cais. Os viajantes entram e saem das carruagens, atravessam o campo, de frente, de costas, de perfil. Toda uma azáfama humana que nunca perturba a progressão da câmara. O movimento é contínuo, a velocidade igual, a ligeira oscilação parece nunca dever parar. A câmara parece embalada por ondas invisíveis, embarcada como o gravador que não funciona para ninguém no bote amarelo do Horla. Os planos encadeiam-se, naquela flutuação, deslizam uns para dentro dos outros. Por duas vezes a câmara segue pelas escadas rolantes atrás dos viajantes, para subir para a cidade. Ao longo das mesas do restaurante, em volta do quiosque de um vendedor de salsichas, a flutuação continua, liga o subsolo e a superfície como dois aspectos do mesmo espaço infernal. (...) Pollet dá a ver o invisível, torna sensível a forma de uma cidade, o génio de um lugar, o seu espírito, a sua pulsação. (...)
O poder coreográfico liberta um movimento perpétuo, circular, a vasta “relojoaria do mundo” cantada por Francis Ponge. O cinema de Pollet, transportado pelo espírito da dança, atinge em Trois jours en Grèce, a amplitude de uma cosmogonia.
            Cyril Neyrat
            in catálogo "cinematografia – coreografia"  
Lisboa - Novembro de 2007

EFPSYCHI e THE STOAS de Robert Beavers - 11.12.2007

                                                                                                   © Robert Beavers
O trabalho de Robert Beavers é um dos mais singulares da tradição experimental  – fortemente ancorado nos valores estéticos da cultura clássica é uma obra marcada por um materialismo intenso que explora o paralelismo entre o acto de filmar e o trabalho artesanal, numa tentativa de harmonização das imagens e sons cinematográficos com o inventário das formas existentes na natureza e as formas dos objectos manufacturados pelo homem. (...)
O trabalho de montagem, não é feito através de uma visão do material mas de uma aproximação táctil e sensível (por memória) dos elementos existentes. A sensualidade dos seus filmes deve-se possivelmente a essa capacidade afectiva de perceber a imagem como forma dupla e concentrada de actividade (do realizador, do espectador).
(...) Em Efpsychi, a base de trabalho é o retrato humano – o estudo das formas de um rosto de um jovem rapaz que olha a câmara de frente. (...) Neste caso apercebemo-nos de que o actor em questão, de seu nome Vassili, é um artesão que fabrica vassouras numa oficina em Atenas. O estudo do rosto é acompanhado pelo estudo do espaço que rodeia o corpo que trabalha. Os degraus que conduzem à loja, os passos de quem caminha ao nível dos olhos de quem trabalha e olha do ponto de vista do actor / artesão. (...)

            Ricardo Matos Cabo
            in catálogo "cinematografia – coreografia" 
Lisboa Novembro de 2007

OS OPRIMIDOS de Miklós Jancsó - 11.12.07


Longos travellings, grupos em movimento, zooms que os aproximam e os afastam, eis o que, na maior parte da obra de Miklós Jancsó, viria a caracterizar a palavra “coreográfico”: amplos desdobramentos de movimentos seguindo figuras e técnicas repetitivas, que foi buscar, ora a uma ora a outra, ou simultaneamente, à disciplina militar, às cerimónias religiosas ou ocultas, às tradições camponesas, ao teatro. (...) Mais do que um estilo, algo que se inscreve claramente no ecrã como na vasta planície da puszta húngara que adoptou como o seu cenário quase exclusivo: linhas, geometrias, traços que nascem num deserto atravessado de história. (...)
A comparação entre as técnicas de organização militar e as técnicas do ballet clássico tornou-se um lugar comum teórico, “já que as danças implicam esse trabalho dos símbolos vivos e a cerimónia dos corpos fiéis, os temas de discursos concordantes sobre o poder sagrado e o amor político (...). É assim que funcionam quer as marchas, quer as danças, todos os comandos dos corpos”. O filme Os Oprimidos traduz plenamente esta comparação fazendo dela o dispositivo dos seus grandes e pequenos ciclos  de circulação das personagens. (...) Parece-nos que a origem do “coreográfico” em Jancsó tem a ver com uma relação dos corpos com o espaço que não passa apenas pela adaptação mas pela geração ou desaparecimento mútuos. Ou antes, uma relação que, a partir das regras, alinhamentos, divisões, cria saltos, buracos, dinâmicas e topografias, relançando uma ideia do “coreográfico” que vai muito para além dos dispositivos militares.  (...)
            Cyril Béghin
            in catálogo "cinematografia – coreografia" 
Lisboa Novembro de 2007

PESTILENT CITY de Peter Emmanuel Goldman - 11.12.2007

James Agee chamou às ruas de Nova Iorque  um "teatro e campo de batalha". Crónica dos desapossados da grande cidade, Pestilent City é o chamamento à guerra, uma deambulação cinematográfica cinzenta e granulosa pelas ruas de Nova Iorque – um percurso Norte-Sul, de Times Square até ao Harlem. (...) Pestilent City explora o tema da deriva cinematográfica sob um fundo documental numa procura / denúncia da corrosão do tecido social norte-americano em meados da década de 60.
(...) Não sendo um filme coreográfico em essência, é, no entanto, um filme composto de movimentos, velocidades e repetições. O movimento dos passeantes dos que vivem na cidade é transformado pela câmara lenta, pelos ritmos variáveis da imagem – os gestos tornam-se mais pesados, os corpos movem-se com lentidão, a custo. Tornam-se cada vez mais bruscos, mais violentos, o filme adensa-se mais uma vez nesse vagar sem propósito, sem tempo aparente, numa negatividade sem fim.
            Ricardo Matos Cabo
            in catálogo "cinematografia – coreografia" 
Lisboa, Novembro de 2007