sexta-feira, 31 de outubro de 2008

A FORÇA DO SEXO FRACO de Ingmar Bergman - 05.11.2008


(...) Há já muito tempo, um jovem intrépido escriba escrevia, depois de ter louvado a franqueza e a insolência do filme, “ser sobretudo sensível a uma espécie de elegância coreográfica cujo encanto parece precisamente aproveitar-se das regras habituais da dança”, antes de evocar algumas hipóteses mais ou menos perigosas. Quanto à “elegância coreográfica”, ainda vá, mas o que é que esse jovem sabia das “regras habituais da dança”? Isso, manifestamente, não o impedia de fazer como se
Jean-André Fieschi
in catálogo "cinematografia – coreografia 2"
Lisboa, Outubro de 2008

CANON de Norman McLaren - 05.11.2008

THE UNHOLY THREE (A Trindade Maldita) de Tod Browning - 05.11.2008


Nos anos 20, em Paris, os artistas e escritores do círculo Surrealista admiravam dois cineastas que trabalhavam no circuito comercial, devido à sua imaginação e à capacidade que tinham de enriquecer e transformar cenas quotidianas com elementos bizarros, desprezando as noções corriqueiras de lógica e razão. Um era Louis Feuillade, cujo nome os surrealistas ignoravam, mas cujos filmes adoravam, em parte porque transformavam Paris numa cidade dupla: a que toda a gente podia ver e uma outra cidade, com uma estranha vida subterrânea, cheia de ameaças, transformações e surpresas. O outro era Tod Browning, a quem chamaram “o Edgar Poe do cinema”, o seu “anjo do bizarro”. Mas se Feuillade tinha algo de ingénuo, assim como Souvestre e Allain, os escritores que forneceram a matéria de tantos dos seus filmes, Tod Browning não devia ter nada de ingénuo e para ele o “bizarro”, a anomalia e a habilidade rara como modo de vida, eram tão naturais como para a maioria das pessoas trabalhar num escritório ou numa loja. É porque Browning bem conhecia o mundo do circo, baseado em anomalias, espectáculos físicos e proezas, mundo em que o fantástico e o bizarro são elementos naturais. O circo também fascinou e até influenciou personalidades bem mais prestigiosas e intelectuais do que Tod Browning, como Brecht e Eisenstein, embora por motivos muito diferentes: a ausência de identificação do espectador com aquilo que vê, contrariamente ao que se passa no “drama burguês”. Não era isso, em absoluto, o que interessava Tod Browning e sim a “esquisitice” como espelho deformado do mundo “normal”, a alteração da norma. (...)
Antonio Rodrigues
in catálogo "cinematografia – coreografia 2"
Lisboa, Outubro de 2008

CAPRICES DE NÖEL de Norman McLaren - 05.11.2008

(...) McLaren é um jogador, e joga sempre a vários níveis, sendo pioneiro exímio e inovador no que toca à  representação e distorção da dimensão temporal ou à encenação espacial e temporal das acções, em que além da coreografia visual e cénica, se acrescenta a dimensão temporal, ligada á musicalidade própria da linguagem cinematográfica no seu estado mais puro, bem como á utilização (por vezes demasiado óbvia) da música como suporte da “narração” visual.
Esta “coreografia do tempo”, aliada à coreografia visual, à animação, à pantomima ou mesmo à plasticidade dos corpos encenados constituiu à época uma  visão nova e inédita, ainda hoje marcante no desenvolvimento da linguagem cinematográfica, sendo que a dimensão lúdica / de jogo que imprimiu sempre às suas obras nos continua a encantar e surpreender ainda hoje, apesar do tempo, apesar da ingenuidade, apesar da repetição, apesar do nosso cinísmo.
Nuno Amorim
in catálogo "cinematografia – coreografia 2"
Lisboa, Outubro de 2008

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

THE WIND (O Vento) de Victor Sjõström - 04.11.2008


Aconchegada em sua casa, Letty (Lillian Gish) espera o fim da borrasca aninhada na cama. Julgando que é o marido, Lige (Lars Hanson), que regressa, abre zangada a porta ao malévolo Wirt Roddy (Montagu Love). Assustada por esse homem ameaçador, foge para a tormenta da noite. Ao sabor do vento, torna-se um corpo dançante.
No decurso de uma curta errância, os seus movimentos descrevem uma coreografia ditada pelas deslocações precipitadas da atmosfera. Abandonando a sua antiga forma, o seu corpo desgovernado liberta-se. A sua trajectória para diante, para fora de casa, é contrariada; Letty, fortemente impelida para trás, volta a entrar em casa. Com os braços estendidos, consegue ultrapassar a entrada e apaga-se no nevoeiro. Um plano cinzento estriado de preto (uma das paredes da casa) recolhe o seu corpo, de novo projectado. Letty agarra-se, progride lentamente. Acompanhando o vento, um travelling lateral adianta-se-lhe, faz-lhe perder terreno. Sempre relegada para os limites do campo, ela começa infatigavelmente os mesmos gestos, sem sair do mesmo sítio. Ameaçada pela corrida desenfreada do cavalo branco no céu, ela abandona e regressa, sem o querer, aos braços de Wirt. Depois perde os sentidos.
Nesta passagem de The Wind, extraviado, instável, o corpo de Lillian Gish desfaz-se, reconstitui-se ao sabor de mudanças inesperadas, de reviravoltas. Diante da rectidão de uma barreira, de uma parede, flexível, ela inclina-se e desliza como uma alga. O vento provoca vários movimentos encadeados: basculações para a frente e para trás, rotações que provocam curvaturas, tensões, percursos de diagonais imaginárias, disseminações por uma profusão de pontos, nova aglomeração…
Não é Lillian Gish que dança, é a dança que se insinua.
(...)
Fabienne Costa
in Revue Simulacres n°8, mai 2003, "Ivresses".
in catálogo "cinematografia – coreografia 2"
Lisboa, Outubro de 2008

WATER MOTOR de Babette Mangolte - 04.11.2008

 
(...) Em silêncio, a câmara segue os movimentos da coreografia de Trisha Brown, regista o solo e repete-o de seguida, em câmara lenta. É um filme que sintetiza em dois movimentos a história do filme de dança, na medida em que propõe de modo muito concreto o movimento como qualidade e informação percebido no tempo real e no tempo distendido e aberrante que permite descobrir toda a subtileza dos gestos na progressão do corpo que dança. (...)
in catálogo "cinematografia – coreografia 2"
Lisboa, Outubro de 2008

BLACK ICE de Stan Brakhage - 04.11.2008

(...) P. A. Sitney, provavelmente o melhor historiador da vanguarda cinematográfica americana, com a vantagem de ter um enfoque racional sobre um cinema que costuma ser esotérico, vê duas tendências principais nesta primeira geração de vanguarda nos Estados Unidos, à qual pertence Brakhage. Uma delas é o que Sitney define como o trance film. Segundo o dicionário Webster, trance significa “arrebatamento; êxtase; transporte; estado cataléptico ou hipnótico; estado mediúnico”. Num trance film o protagonista deambula de modo sonâmbulo em espaços semi-vazios, numa clara herança dos trabalhos de Cocteau e Buñuel nos anos 20, em filmes que aceitam e até exigem a perspectiva clássica e o ilusionismo fotográfico, de que são exemplos os trabalhos de Maya Deren. (...)
Antonio Rodrigues
Folhas da Cinemateca
in catálogo "cinematografia – coreografia 2"
Lisboa, Outubro de 2008

DIE PUPPE (A Boneca) de Ernst Lubitsch - 04.11.2008


(...) A genialidade de Die Puppe vem-lhe de uma aliança muito feliz entre a exploração das tendências primitivas do cinema, o uso e abuso das potencialidades técnicas dos códigos do mudo, a veia burlesca e a influência pictórica, e, last but not least, os elementos próprios do universo Lubitsch. Assim se explicam as referências a este filme quase sempre combinando termos não necessariamente compatíveis, “um conto de fadas expressionista”, “um fantástico burlesco”, um filme onde coexistem “o caligarismo, Méliès e o desenho animado”, onde “se sentem os ecos da Alemanha romântica”, e onde “as sombras demoníacas do cinema alemão servem de motivo de riso”.  Quanto à sensibilidade expressionista de Lubitsch, inexistente na tese de Lotte Eisner e visível na estilização e na mise-en-scène dos seus filmes deste período segundo o próprio Lubitsch, digamos apenas que alimentou discussões. Lubitsch nunca chegou à distorção expressionista, mas é inegável o facto de que, no mesmo ano de Kabinett des Doktor Caligari de Robert Wiene, utilizou em Die Puppe o que ficaria a ser conhecido como a tela pintada caligarista. (...)
Maria João Madeira
Ernst Lubitsch, ed. da Cinemataca
in catálogo "cinematografia – coreografia 2"
Lisboa, Outubro de 2008

CARABOSSE de Lawrence Jordan - 04.11.2008


Lawrence Jordan é um cineasta-artesão, que, desde 1955, explora nos seus filmes as diferentes possibilidades da colagem animada. Inicialmente próximo de Stan Brakhage, foi o contacto com o imaginário de Joseph Cornell, de quem foi colaborador,  que inspirou o seu trabalho, bem como o seu interesse pelas colagens de Max Ernst, pelo coleccionismo e pela compilação visual. Carabosse aproxima-se do universo de Cornell, pela sua evocação mágica da noite e pelo sedimentar do imaginário iconográfico utilizado. Diversas figuras flutuam sobre um fundo negro, rearranjando-se no espaço limitado e constrangido da imagem. O filme é uma miniatura cinematográfica e foi concebido pelo realizador para ser apresentado num ecrã de dimensão reduzida, podendo, no entanto, ser apresentado de modo tradicional.
in catálogo "cinematografia – coreografia 2"
Lisboa, Outubro de 2008

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

CAROLYN CARLSON SOLO de André S.Labarthe - 03.11.2008


(...) Por vezes aquilo vai muito depressa, como uma corrida para o abismo, um thriller inflamado. Outras vezes a velocidade é muito lenta. Quando tudo fica mais lento fora, acelera dentro, Carolyn descreve a coisa de facto muito exactamente, esse saber do corpo e do espírito, do corpo no espírito, do espírito no corpo, de facto muito bem, vê-se que ela sabe do que fala.
E a dança? Não é um filme sobre a dança, é o filme inteiro que dança, como vemos Maurice Perrimond fazer quando, com a segunda câmara sobre o fim do filme, ele mima Carlson no seu próprio corpo e frustra o solo desdobrando-a na imagem, ela própria então desdobrada.(...)
Jean-André Fieschi
in catálogo "cinematografia – coreografia 2"
Lisboa, Outubro de 2008

PAS DE DEUX de Norman McLaren - 03.11.2008


(...) Pas de Deux faz parte de uma trilogia de filmes com Ballet Adagio, 1972, e Narcissus, 1983. Estes são exercícios fílmicos nos quais a expressão de uma forma muito específica e codificada de acção, o ballet, é abordada.
McLaren há-de declarar muitas vezes a sua devoção à dança sublinhando nela a dimensão do movimento:
"Every film for me is a kind of dance, because the most important thing in film is motion, movement. No matter what it is you’re moving, wether it’s people or objects or drawings; and in what way it’s done, it’s a form of dance."
Obviamente, quando falamos de movimento não estamos necessariamente a referir o voo das gaivotas, tal como quando falamos de pintura não nos referimos ao pôr-do-sol, diria outro animador para quem a expressão do movimento era essencial enquanto dimensão abstracta. O mesmo é verdadeiro quando falamos de um filme de Norman McLaren: é sempre questão de movimento.
A origem do movimento que vemos no ecrã em Pas de Deux, parece ter lugar no corpo dos bailarinos; parece provir da energia que tem origem no seu corpo. Assim é, de facto, quando aqueles dançam perante nós num palco. Nunca é assim quando aparecem num ecrã de cinema. Há uma série de procedimentos técnicos que, ao mesmo tempo que permitem o registo e permanência fotográfica das formas no tempo, as transforma em signos que integram modos de codificação os quais lenta mas seguramente se vão instituindo como norma. (...)
Marina Estela Graça
in catálogo "cinematografia – coreografia 2"
Lisboa, Outubro de 2008