domingo, 31 de outubro de 2010

ANATOMY OF A MURDER de Otto Preminger - 06.11.2010 - 21h30


(...) Quem impede a rotina, quem perturba verdadeiramente os hábitos, é Biegler-Stewart, o advogado mais indisciplinado que se possa imaginar, como exclama, irritado, o seu adversário. Capaz de sentar-se ao lado de Duke Ellington e de improvisar um duo com ele, Biegler aborda a sua defesa como se fosse uma partitura de jazz: conhece as regras melhor do que ninguém e por isso mesmo sabe contorná-las, passa constantemente do tom formal ao pessoal, joga com o público, cuja simpatia ou distância sabe pressentir e, sobretudo, conhece o timing, o momento exacto para intervir ou abster-se e até dar a impressão de que está a agir contra a causa que defende.(...)
Entre os actores, há um que se destaca dos demais, sobretudo porque não tem interesses a defender, nem diante da câmara nem por detrás dela. É verdade que quem triunfa no filme é Biegler-Stewart, mas fá-lo diante do olhar divertido e indulgente do juiz Weaver (que substitui o habitual juiz do condado), por vezes quase sob a sua direcção. Isto não se dá por acaso, pois o personagem do juiz deve muito ao seu intérprete. Quem é Joseph N. Welch? Um advogado que não deixou passar a primeira oportunidade de ser juiz que teve na vida, embora para o cinema. (...)
Na Primavera de 1954, uma série de audiências no Senado americano opôs os representantes das Forças Armadas americanas (inclusive o próprio Secretário de Defesa) a Joseph R. McCarthy (...).
O aspecto excepcional do acontecimento fez com que as audiências não apenas fossem públicas, como é a regra, mas fossem transmitidas em directo pela televisão nacional. Os Estados Unidos apaixonaram-se por esta batalha, cuja audiência foi superior à dos grandes acontecimentos desportivos.
Alguns dos golpes mais duros contra McCarthy foram desferidos por um advogado de Boston que aconselhava as Forças Armadas, “in the guise of a simple trial lawyer”: Joseph N. Welch. (...)
Preminger não se limitará a utilizar Welch como actor e a dar a James Stewart o seu ar bonacheirão e as suas astúcias.(...)
Bernard Eisenschitz
in catálogo "cinematografia – teatralidade 2"
Lisboa, Outubro de 2010

POINT OF ORDER de Emile de Antonio - 06.11.2010 - 19h30


Point of Order, primeiro filme de Emile de Antonio, (...)  é ao mesmo tempo um extraordinário documento histórico e um extraordinário momento da arte do filme de montagem. E também é um grande momento de teatro, pois não há nada que mais se pareça a uma representação teatral do que uma audiência num tribunal, a tal ponto que na vertente do cinema que deriva directamente do teatro há um abundante subgénero, o filme de tribunal, que os americanos designam, muito apropriadamente drama de tribunal (courtroom drama, a palavra drama designando aqui uma peça de teatro). As audiências de uma comissão parlamentar que vemos em Point of Order, o chamado caso Exército versus McCarthy, seguem todos os procedimentos de uma audiência em tribunal: réu, defesa, testemunhas, juízes. (...)
Point of Order é sem a menor dúvida um dos grandes courtroom dramas de sempre, de tal maneira os elementos narrativos se acumulam pouco a pouco e a balança passa a pender de um lado para o outro. Diante destes documentos históricos, temos por vezes a impressão de assistirmos a uma ficção brilhantemente elaborada: apresentação inicial dos elementos, crescendo dramático, ponto culminante e o desenlace em que a culpabilidade do réu é provada. Tudo isto se encadeia com uma alternância de tensões e distensões, através das diversas técnicas de desestabilização do adversário que cada um dos personagens tenta: ironia, falsa indignação, manobras de diversão, mentira deslavada. (...)
Antonio Rodrigues
in catálogo "cinematografia – teatralidade 2"
Lisboa, Outubro de 2010


De Antonio conhece as teorias de Eisenstein e as diversas concepções da montagem. Mas também é um cineasta americano, formado pelas comédias que vira na juventude, consciente do poder de subversão de Laurel e Hardy, dos Marx Brothers ou de W. C. Fields, cujo It's a Gift considerava como uma das melhores análises do capitalismo americano. Contrariamente aos seus amigos do New American Cinema (o underground nova-iorquino), ele conhecia a força da dramaturgia e das personagens no cinema. Em Point of Order, McCarthy lembra às vezes Fields ou um outro actor irlandês, Pat O'Brien (que se pôs a chorar, sozinho, num bar, na noite em que o senador morreu). Welch já tem a magnífica presença que terá no filme de Preminger. [Anatomy of o Murder]. Com a cabeça apoiada na mão fechada, à altura do queixo ou sobre o rosto, com os óculos na ponta dos dedos, ele é a imagem de alguém que ouve de modo algo distraído, mas não deixa passar nenhuma oportunidade de marcar pontos contra McCarthy.
Bernard Eisenschitz
in catálogo "cinematografia – teatralidade 2"
Lisboa, Outubro de 2010

L'AFFAIRE DREYFUS de Georges Méliès - 06.11.2010 - 19h30


(...) Como se sabe, o caso Dreyfus dividiu a França em dois campos opostos e furiosamente irreconciliáveis, os que diziam que Dreyfus tinha sido vítima de uma conspiração e os que insistiam em dizer que era culpado. Quando o filme foi lançado, as paixões desencadeadas pelo caso estavam no auge e houve violentas refregas nos cinemas, fazendo com que L'Affaire Dreyfus fosse retirado de cartaz, no que talvez tenha sido o primeiro caso de censura na história do cinema. Dreyfusard convicto, Mélies faz o papel de Fernand Labori, o advogado de Émile Zola (que tomara a defesa do capitão num artigo célebre e violento, intitulado “Acuso” "J'accuse") e de Dreyfus, no segundo processo, em Rennes.
O filme reconstitui todas as etapas do caso e é dividido em treze capítulos que são verdadeiros actos de uma peça.(...)
Antonio Rodrigues
in catálogo "cinematografia – teatralidade 2"
Lisboa, Outubro de 2010

4 e 5 de Novembro

sábado, 30 de outubro de 2010

SERGEANT RUTLEDGE de John Ford - 05.11.2010 - 21h30

 
(...) Aos olhos do mundo branco, Rutledge só pode ser culpado. Aos olhos de Ford, como aos de Cantrell, só pode ser inocente, apenas com a diferença, e não é de somenos, de que, para Ford, ele só é inocente por ser considerado culpado. Sabe, portanto, que, em certa medida, a este processo-simulacro só poderá opor um processo-engodo, trompe-l'oeil contra trompe-l'oeil.
Ford reduz deliberadamente o espaço tradicional evacuando a sala, recorre descaradamente a todo o arsenal maneirista, contrata pela segunda vez a artista menos fordiana (Constance Towers), brinca com os testemunhos, não liga minimamente ao verdadeiro culpado (que podia chamar-se MacGuffin) a não ser para fazer dele uma imitação de Hans Beckert-Peter Lorre, ridiculariza o processo (Cantrell é, simultaneamente, o advogado de defesa e um dos actores e testemunhas do drama), pulveriza as analogias dramatúrgicas que fizeram as glórias dos processos hollywoodescos e transforma o tribunal numa cena de ópera militar.  (...)
Pierre Léon
in catálogo "cinematografia – teatralidade 2"
Lisboa, Outubro de 2010


(...) Já em Young Mr. Lincoln (A Grande Esperança), Ford punha em cena o processo dos irmãos Clay como uma peça de teatro. Em Sergeant Rutledge, o processo já não é metafórico, mas literal. Ford acentua a teatralidade recorrendo a ângulos e a escalas de plano que dividem nitidamente o espaço entre a cena onde se desenrola a representação e o público que assiste a ela. Há uma série de planos enquadrados do ponto de vista do público, presente ou ausente, como que apoiados na balaustrada que divide a sala em profundidade como no varandim de uma sala de teatro. Um desses planos passa da horizontal para um picado, como se a cena estivesse a ser vista do primeiro balcão. Quando o jovem advogado, que chega com um dia de atraso, vê o grupo de mulheres que espera à frente do tribunal, diz recear que elas encarem o processo que se vai desenrolar como jogos do "circo romano".(...)
Cyril Neyrat
in catálogo "cinematografia – teatralidade 2"
Lisboa, Outubro de 2010
sessão com a presença de Cyril Neyrat e Pierre Léon

THE RETURN OF FRANK JAMES de Fritz Lang - 05.11.2010 - 19h00

(...) Uma vez mais, para dividir a encenação especular (a de Frank) e a encenação fictícia (a dos Ford) Lang recorre à encenação espectacular. Neste caso não é o “filme dentro do filme”, mas a “peça dentro do filme”. Um dos momentos de antologia desta obra é a irrupção de Fonda pelo teatro onde Carradine e Tannen representam (ou seja, falseiam) a morte de Jesse, atribuindo-se o lugar dos heróis que não eram. O contracampo do palco com o camarote de Fonda (e com o olhar de Fonda) varre-os de cena, como depois se repetirá na morte de Charlie Ford e na fuga do tribunal de Bob Ford. Fonda é o espectador que sabe de mais e que, por isso, sobrepõe à mise-en-scène desarticulada, à má representação (a do teatro) a mise-en-scène articulada e a presença não representável. (...)
João Bénard da Costa
Folhas da Cinemateca
in catálogo "cinematografia – teatralidade 2"
Lisboa, Outubro de 2010

(...) Será que Frank James era um verdadeiro actor? No início do filme, quando fica a saber que os irmãos Ford não vão ser condenados pelo assassinato de Jesse, e que, além disso, vão ficar com parte da recompensa, Frank decide voltar a pegar em armas, mas fá-lo como o faria um actor já reformado que quisesse voltar ao palco. (...)
Mas é na cena final, a do julgamento, que a dimensão teatral do filme atinge o auge. Os verdadeiros julgamentos de Frank James desenrolaram-se, aliás, mais ou menos da mesma maneira. Houve muitos, no espaço de três anos, e todos eles tiveram um final feliz para Frank, com um júri sulista conquistado desde o início e, aparentemente, um humor geral bonacheirão, assemelhando-se mais a uma paródia de julgamento. No filme de Lang, é o Major Rufus Cobb (Henry Hull, muito cabotino e super maquilhado), o editor janota do jornal local, que está encarregado da defesa, não sem alguma apreensão: “I may be a mite rusty” confessa ele a Frank. Haverá um erro de casting? Ficamos imediatamente impressionados com o tom muito fordiano da cena do julgamento, e mais uma vez nos lembramos de A Grande Esperança (Young Mister Lincoln). (...)
Stéfani de Loppinot
in catálogo "cinematografia – teatralidade 2"
Lisboa, Outubro de 2010
sessão com a presença de Bernard Eisenschitz

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

BIETTE de Pierre Léon - 04.11.2010 - 21h30 - 1ª exibição pública


Foi a Christine Laurent, como ela conta no filme do Pierre Léon, que trouxe à Cornucópia o Biette. Ela saberá porquê. Mas julgo que acertou. E quando ela me mandou o Pierre Léon que me pedia para ler em francês o monólogo que o Biette acrescentara em Lisboa ao seu projecto de filme e nosso Barba-Azul, e que eu próprio traduzira, senti a responsabilidade de um momento grave, como o Pierre Léon, aliás, mostra no filme. Eu estava a renovar uma espécie de baptismo. E era como se a este seu amigo, o tivesse conhecido sempre. E ao ver o seu filme sobre o Biette ficou mais que claro que através do Barba-Azul e sem ter de pensar muito nisso (tudo no convívio com o Biette, segundo me lembro, era também assim, como se nada fosse) tinha passado a fazer parte de uma espécie de irmandade. Pobre. É disso, a meu ver, que nos fala o filme onde vão desfilando pessoas tão diferentes mas com alguém em comum que dá nome ao filme e de certo modo as transforma e quase não aparece. E lá longe, como também se percebe no filme, um santo que juraria que nos será comum: Pasolini. Seremos todos Franciscanos? Não é isso. Mas todos teremos amado o fradinho de Rossellini. (...)
Luis Miguel Cintra
in catálogo "cinematografia – teatralidade 2"
Lisboa, Outubro de 2010



(...) Tratando-se de um retrato, o caso é atípico na obra de Pierre Léon, de que conhecemos as adaptações de Dostoievski ou Tchekhov, as “féeries civiles” (termo roubado), as viagens à Rússia de personagens em improviso. O que se mantém, aqui em ligação directa com o fulcro do filme, é esse espírito de trupe, uma produção entre amigos e colaboradores recorrentes construída à volta de um núcleo de amigos. Em Biette, são chamados a intervir nesse exacto papel e Pierre Léon, fora e dentro de campo, é um deles, lugar que assume, de partida. O arranque do filme tem lugar numa sala de teatro em atmosfera de ensaios, onde no fim voltamos, para assistir à interpretação da cena da floresta de Barbe-Bleue, de Biette, por Françoise Lebrun (actriz de um primeiro Biette, Pornoscopie, no fim deste filme Barbe-Bleue), Pascal Cervo (actor do último filme de Biette, Saltimbank, aí chegados o mensageiro) e Léon (que no fim do seu filme toma a pele de Mathieu), três personagens alumiadas por uma candeia à procura de um autor no escuro de uma sala, entre as cadeiras de uma plateia nesse momento tornada palco. (...)
Maria João Madeira
in catálogo "cinematografia – teatralidade 2"
Lisboa, Outubro de 2010

sessão com a presença de Pierre Léon, Christine Laurent, Maria João Madeira, Marcos Uzal

ONCLE VANIA de Pierre Léon - 04.11.2010 - 19h30 - Ante-estreia

(...) A melancolia [...] é difusa, é daquelas que nos assalta depois de um almoço de Verão, quando se resiste à sesta para conversar devagarinho com os familiares ou sentar-se preguiçosamente debaixo de uma árvore, porque o álcool e o cansaço da digestão deixaram os olhos demasiado sensíveis. Então, a preguiça de um instante deixa-se atravessar pela nostalgia de aventuras mortas, enquanto um vago tédio torna o futuro insuperável - uma suave indolência sugere-nos que tudo acabou. O Tio Vânia é aquele que não quer deixar-se levar por este estado que, lucidamente, constata para o rejeitar: recusa a beatitude de Gaufrette (Vladimir Léon) e, quando Elena Andreïevna (Bénédicte Dussère) declara que está um tempo maravilhoso, ele responde alegremente que “está um tempo para a gente se enforcar”. Ora, talvez seja precisamente por estar maravilhoso que é de “se enforcar”: tal como, por vezes, um bem-estar passageiro nos lembra que a felicidade é impossível, aquilo que surge como maravilhoso pode levar-nos a pensar naquilo que já não o é. Pierre Léon torna estes sentimentos palpáveis através da luz, mas, também, através da presença dos actores que parecem ter sido enredados no estado das suas personagens, como que envolvidos num doce cansaço.(...)
Marcos Uzal
in catálogo "cinematografia – teatralidade 2"
Lisboa, Outubro de 2010

sessão com a presença de Pierre Léon, Diogo Dória, Marcos Uzal

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

2 e 3 de Novembro

LES INTRIGUES DE SYLVIA COUSKI de Adolfo Arrieta - 03.11.2010 - 22h00


(...) Estávamos em 1974, o mesmo ano de La Maman et la Putain, mais um filme-testemunho da época. Mas, enquanto Jean Eustache “reconstitui” implacavelmente a atmosfera do tempo - as relações amorosas, a ressaca do pós 68, o quartier latin, a moda, as palavras, os factos e os gestos - realizando, por certo involuntariamente, por intermédio da ficção aquilo que para nós se tornou também um documentário, Adolfo Arrieta deixa a ficção avançar nas entrelinhas, ao ponto de parecer que esta existe antes da chegada e da concretização cinematográfica, para além do que é filmado. Como um fotógrafo que no escuro do seu laboratório via aparecer algo nos negativos, uma figura, uma situação que não tinha visto no momento em que tirou a fotografia. Igualmente, enquanto Jean Eustache radiografa e disseca transformando os seus escalpelados em heróis universais, em Adolfo Arrieta não há a mínima cirurgia, a mínima identificação: clara manifestação de uma época, as suas criaturas são, mais do que universais, fundamentalmente intemporais, fora do tempo e fora da sociedade. Para além da ficção e para além do documentário.(...)
E há Marie France. Meio fada, meio duende, a cantora que preenchia então as belas noites do Paradis Latin é Cármen, a escultura viva. Uma libélula espetada por um naturalista, exposta a todos os olhares, tanto por Arrietta como pelo artista Vernon. E embora nem um nem outro tenham a crueldade de Peter Ustinov, ela é uma irmãzinha de Lola Montes, trágica e comovente.(...)
Renaud Legrand
in catálogo "cinematografia – teatralidade 2"
Lisboa, Outubro de 2010
sessão com a presença de Renaud Legrand e Marcos Uzal

THE BLACKBIRD de Tod Browning - 03.11.2010 - 19h30


(...) Estamos aparentemente - mas apenas aparentemente - num mundo organizado sob o signo de uma visão maniqueísta. Uma visão que, de certo modo, ilustra a divisão perfeita entre Jeckyll e Hyde, dicotomia exemplar que serve sistematicamente de modelo à estruturação das ficções de Browning. Por outro lado, o cineasta utiliza o seu actor favorito, Lon Chaney (curiosamente filho de pais surdos-mudos), para encarnar um papel marcado não só pela duplicidade como pela duplicação. (...) Na verdade, em The Blackbird, ninguém é o que aparenta. 
Saguenail
in catálogo "cinematografia – teatralidade 2"
Lisboa, Outubro de 2010
sessão com a presença de Regina Guimarães e Saguenail

FREGOLI TRANSFORMISTA de Leopoldo Fregoli - 03.11.2010 - 19h30

Leopoldo Fregoli, ventríloquo e músico, conquistou uma reputação mundial como transformista, podendo interpretar em cena uma centena de diferentes papéis no mesmo espectáculo, mudando de personagem e de fato a uma velocidade alucinante.
Em 1897, em Lyon, durante um espectáculo no Théatre des Célestins, encontrou os irmãos Lumière que vieram assistir à representação. Louis Lumière convidou-o a visitar o seu laboratório. Fregoli, muito interessado por esta descoberta, procurou desde cedo integrar o cinema no seu espectáculo, convencendo os irmãos Lumière a vender-lhe um aparelho.
Fregoli modificará ligeiramente o aparelho que chamará de Frégoligraph e com o qual filmará em Itália numerosas curtas-metragens, de 1897 a 1903.
Alguns destes filmes mostram o seu espantoso processo de transformação, em plano único, como se assistíssemos ao seu espectáculo no palco.

GREZY (SONHO) de Yevgueni Bauer - 02.11.2010 - 21h30 - sessão de abertura


(...) Será pouco dizer que a história de Grezy (Sonho) suscita uma certa estranheza inquietante quando hoje em dia o vemos. Sergei Nikolaevich, viúvo inconsolável, pensa ter visto a mulher tão amada, viva, ao virar de uma esquina. “Elena!” Sim, é mesmo ela, ou melhor, a sua reencarnação, uma outra que se parece muito com ela, uma outra um tudo ou nada vulgar - mais tarde percebemos que é uma actriz - mas quem sabe se, uma vez com as vestes da defunta, essa semelhança não seria perfeita? Deixamo-nos facilmente levar pelas recordações que nos assolam durante estes planos, um corpo resgatado na Baía de San Francisco, um velho cemitério, uma ruiva um pouco ordinária, um vestido verde, cabelos soltos... Como se Grezy, contrariando o tempo, reencenasse o guião de Vertigo (A Mulher que Viveu Duas Vezes). Tal não é possível no nosso pequeno mundo racional (como também não é possível essa morta voltar à vida), mas a vertigem que se sente nessas imagens fez o seu caminho, obcecando-nos para sempre. (...)

Stéfani de Loppinot
in catálogo "cinematografia – teatralidade 2"
Lisboa, Outubro de 2010 

(...) Que coisa transforma um romancezito (...) (Bruges-la-morte, de Georges Rodenbach) numa obra-prima do cinema? Yevgeni Bauer, o maior realizador de cinema da era czarista e um dos maiores cineastas de sempre soube-o antes de muitos outros e com uma consciência lucidíssima: a encenação. Em Grezy, Bauer conta a sinistra história de um viúvo que julga reconhecer numa actriz a cópia exacta da sua mulher, acabando por assassiná-la num delírio fetichista: a encenação é toda ela um jogo entre diversos níveis de realidade misturados entre si - a visão, o pesadelo, o real - que dão vida a uma obra moderna e complexa (e estamos apenas em 1915!). Todo o filme poderia ser lido como uma visão onírica obsessiva: a estrutura é quase circular - abre e fecha com a morte daquela que parece ser a mesma mulher - e todo o filme se assemelha a um registo minucioso das alterações de uma mente cada vez mais ensombrada pela dor e pelo luto. Bauer mantém a câmara afastada das personagens - aqui não existem os seus extraordinários e inovadores primeiros planos - e cria uma série de tableaux vivants, que sublinhando mais ainda uma recitação dos actores já de si pesada e teatral, parecem tornar visível o estado de espírito cada vez mais angustiado do protagonista.(...)
Federico Rossin
in catálogo "cinematografia – teatralidade 2"
Lisboa, Outubro de 2010 


UMA HISTÓRIA IMORTAL de Orson Welles - 02.11.2010 - 21h30 - sessão de abertura


(...) Era uma vez, em Macau, um rico comerciante, o Sr. Clay... um dia lembra-se da história de um marinheiro ... a de um velho negociante, sem herdeiros, que pede a um marinheiro que passe a noite com a mulher dele ... e Clay manda o seu guarda-livros encontrar duas pessoas que representem esta história... (...) A encenação pode começar. Todos sabem os seus papéis. Melhor até do que aquilo que Clay consegue imaginar. Pode mesmo dizer-se que, nesta matéria, até sabem mais do que ele. E é realmente um pequeno teatro que Welles dirige na pele de Clay. O marinheiro é recebido diante de uma bandeira vermelha. Nada a censurar. Estamos em terreno conhecido. A única coisa é que nenhum realismo preside à sequência. A cortina pode abrir-se sobre o drama. (...)
Jean Breschand
in catálogo "cinematografia – teatralidade 2"
Lisboa, Outubro de 2010

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

CINEMATOGRAFIA - TEATRALIDADE 2


Em 2009 demos início a uma nova etapa deste ciclo, que prossegue em 2010, com uma nova porta de entrada - questionar as relações entre o cinema e o teatro. Esta programação procura, desde a sua primeira edição, levar o espectador a abordar os filmes - mesmo aqueles que já conhece - com um novo olhar e a redescobri-los graças à simples alteração do ponto de vista, desta vez através da teatralidade.
Alguns fios condutores guiaram a escolha dos filmes. Um deles é o tema da representação (a passagem do real ao imaginário ou, melhor dito, da mise en scène do real, a sua teatralização), como é o caso de Uma História Imortal de Orson Welles, ou Sonho (Grezy) de Yevgueni Bauer ou ainda Céline et Julie vont en bateau de Jacques Rivette. Um segundo fio condutor aborda aqui um conjunto de quatro filmes, filmes sobre o processo no cinema americano onde a sala do tribunal é encarada como uma verdadeira cena de teatro (The Return of Frank James, de Fritz Lang, Sergeant Rutledge, de John Ford, Anatomy of a Murder, de Otto Preminger e Point of Order, de Emile De Antonio). Outros ainda abordam o tema da metamorfose, o espaço enquanto cena, a frontalidade, as relações entre espaços fechados-espaços abertos, etc.
A separação entre os diferentes temas está longe de ser estanque e cada um dos temas evocados encontra ressonâncias em todos os outros.
Teremos a presença de Acácio de Almeida, Bernard Eisenschitz, Christine Laurent, Luís Miguel Cintra, Cyril Neyrat, Diogo Doria, José Manuel Costa, Luís Miguel Oliveira, Margarida Gil, Maria João Madeira, Marcos Uzal, Pierre Léon, Regina Guimarães, Renaud Legrand, Antonio Rodrigues, Saguenail, Alberto Seixas Santos, Augusto M.Seabra para participar nas conversas (informais) sobre estes filmes.
Esta programação foi concebida e coordenada por Pierre-Marie Goulet, Teresa Garcia e Ricardo Matos Cabo em conjunto com a Cinemateca Portuguesa e com a colaboração de Bernard Eisenschitz, Cyril Neyrat e Stéfani de Loppinot.
Um catálogo que inclui textos inéditos dos participantes considerando esta perspectiva da teatralidade acompanha (e prolonga) este ciclo.

Edição 2010: cinematografia - teatralidade 2

terça-feira, 26 de outubro de 2010

CINEMATOGRAFIA - TEATRALIDADE 2: CATÁLOGO


O catálogo "cinematografia-teatralidade 2",  edição 2010 de "o cinema à volta de cinco artes - cinco artes à volta do cinema" estará disponível a partir do dia 2 de Novembro,  dia da abertura deste ciclo, na Cinemateca Portuguesa. Este livro de 156 paginas contém textos originais de Jean Breschand, Stéfani de Loppinot, Federico Rossin, Emmanuel Siety, Saguenail, Renaud Legrand, Pierre Léon, Cyril Neyrat, Antonio Rodrigues, Bernard Eisenschitz, Philippe Lafosse, Maria João Madeira, Marcos Uzal, Diogo Dória, Luís Miguel Cintra, Philippe Fauvel, Ricardo Matos Cabo, Alok B. Nandi e ainda textos de Jean-André Fieschi, Manuel Cintra Ferreira, João Bénard da Costa, Giorgio Passerone, Jean-Claude Biette e Christine Laurent.