sexta-feira, 6 de novembro de 2009

OPENING NIGHT (Noite de Estreia) de John Cassavetes - 11.11.2009


(...) Como Stromboli ou como Vivre Sa Vie, Opening Night é a subversão das regras do “star vehicle”: num aparente mimetismo das suas convenções, trata-se sempre de pôr uma actriz (não por acaso mulher do realizador) debaixo de todos os holofotes. Depois é que as coisas mudam e em vez de se procurar firmar uma identificação e um reconhecimento seguros se faz precisamente o contrário. Põem-se em causa, desafiam-se essas identificações e esses reconhecimentos, até que seja a própria imagem da actriz a vacilar e a resistir a qualquer fixação.
No filme, é dessa vacilação que tem medo a personagem de Gena Rowlands. Opening Night, mais do que um filme de actores como quase todos os filmes de Cassavetes, é um filme sobre actores. E Gena Rowlands veste a pele de uma actriz, cujo papel na peça teatral em que presentemente trabalha vai lançar numa profunda crise pessoal - entre outras coisas, porque sente que a sua imagem está em jogo e porque tem tanto medo de a sentir vacilar como de a ver definitivamente fixada (acredita que, depois da peça, fique condenada a representar sempre o mesmo tipo de papéis), ou porque, noutros termos, tem medo de envelhecer e de descobrir que já não é a mesma. Opening Night é a história da sua tentativa de fuga, uma fuga de si própria que só a leva cada vez mais para dentro de si própria - de tal modo que, literalmente, os seus fantasmas se materializam (corporizados na jovem morta por atropelamento no princípio do filme).(...)
Luís Miguel Oliveira
Folhas da Cinemateca
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

TO BE OR NOT TO BE de Ernst Lubitsch - 11.11.2009


(...) Sucede que quanto mais vejo o filme e penso nele, mais se me impõe que esse título não foi escolhido ao acaso nem por acaso foi esse o monólogo escolhido.
O que vou dizer é muito discutível, e por isso avanço com cautelas e por partes.
1) To Be or Not To Be, filme inteiramente calculado sobre efeitos de representação, sobre a representação de uma representação, sobre o teatro no teatro, sobre o cinema no cinema, sobre o espectáculo no espectáculo, parece-me funcionar de modo equivalente à “peça dentro da peça” do Hamlet. Se bem se lembram, a peça que Hamlet encomendava aos actores em visita a Elsinor, destinava-se a representar o crime que lhe matara o pai para tentar desmascarar os criminosos. Hoje, diríamos que era um psicodrama para confirmar a Hamlet que o fantasma tinha falado verdade.
De certo modo, pode dizer-se que a finalidade de Lubitsch é a mesma: através de mirabolantes peripécias, encenar o nazismo, por forma a que este fosse simultaneamente exorcizado e libertado na sua essência maléfica. A “mise-en scène” funciona como a ampliação do embuste, de todos os embustes (dos amorosos aos teatrais e aos políticos). To Be or Not To Be (inscrito, desde o título, sob o signo do teatro) é a encenação genial do duelo entre duas encenações igualmente risíveis: a do encenador Dobosch e a do encenador Hitler. Por isso, as personagens podem trocar de peça (e de papéis) com tanto à vontade e com idênticos lapsos. (...)
João Bénard da Costa
Folhas da Cinemateca
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

LARMAR OCH GOR SIG TILL (Na Presença de um Palhaço) de Ingmar Bergman - 10.11.2009

 
(...) Ao primitivo personagem [de Carl], Bergman acrescenta outras características. A paixão por Schubert, a sífilis (que dominam, de forma brilhante, o primeiro diálogo entre Carl e o médico), e um “invento” especial : a cinematografia sonora, que consistia em actores debitarem os diálogos do filmes atrás de uma cortina (que, sabe-se, era uma prática frequente nas exibições de filmes mudos). Carl teria realizado um filme para assim ser projectado, tendo por tema a vida e morte de Schubert, e que o deixou arruinado.
[Na segunda parte de Larmar och Gor Sig Till (...) o filme transforma-se (...) numa belíssima homenagem aos “fabricantes de imagens” (que é o título do novo trabalho, e outra admirável homenagem ao cinema mudo, que é Bildmakarna que Bergman fez em 2000). A própria exibição do referido filme parece, desde logo, uma homenagem (inconsciente?) ao velho cinema, pois os planos da porta exterior que se abre fazendo entrar uma revoada de neve artificial, na sua repetição lembra planos idênticos e anedóticos de The Fatal Glass of Beer com W.C. Fields. Bergman, porém, trabalha noutro registo. A homenagem, aqui, tem a ver com a relação que esse tipo de apresentação do filme tem (tinha) com o teatro. E, para o sublinhar, faz “desaparecer” o filme ainda no primeiro acto com a intervenção “providencial” de um incêndio. Para não defraudarem os amigos espectadores, Carl e os seus cúmplices transformam a exibição numa “representação”. (...)
Manuel Cintra Ferreira
Folhas da Cinemateca
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

THE PHILADELPHIA STORY (Casamento Escandaloso) de George Cukor - 10.11.2009


(...) se basta um nada para que o drama se evapore em comédia, também basta um nada para que a comédia se deteriore em drama. Fragilidade, maleabilidade do instante vivido que fazem do mundo do espectáculo, para Cukor, um mundo privilegiado: é nesse mundo que se vive mais intensamente, porque nele se passa mais facilmente de um estado a outro.
O que explica que, do mesmo modo que ontem a de Lubitsch, ou que hoje, para uma grande parte, a de Godard, a obra de Cukor seja uma resposta - ou uma pergunta paralela - à célebre pergunta da Camilla, de Renoir.
As interpenetrações do teatro e da vida, da representação e da verdade, do drama e da comédia tecem aqui redes subtis, armadilhas e abrigos onde as aparências, a pouco e pouco, se deixam apanhar ou se refugiam. Ainda aqui se trata de nos entendermos sobre o teatro, a propósito do qual o fascínio experimentado por Cukor não limita a sua existência à sua presença visível, como em A Star is Born, Les Girls, Heller in Pink Tights, Let's Make Love … Porque ele vive também de uma vida mais secreta, em segundo grau, em filmes em que um olhar superficial não conseguiria descortiná-lo: nas comédias com Judy Holliday, ou neste Philadelphia Story. (...)
Jean-André Fieschi
Cahiers du Cinéma, nº140, 1963
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

HELLER IN PINK TIGHTS (Agarrem essa Loira) de George Cukor - 10.11.2009


(...) Em Heller in Pink Tights, Cukor vai fazer surgir esse delicioso sentimento de perturbação e de maravilhoso ligado às práticas da ilusão, jogando sem cessar com a montagem e com os espaços. O teatro de Pierce, que acolhe a trupe de Healy em Cheyenne, é um magnífico exemplo disso: é impossível identificar a maneira como se interligam as suas diferentes partes sem visionar várias vezes as cenas em questão (como se faria para descobrir um truque de magia). Tudo é feito de cortes, ocultações, caixas cénicas ligadas umas às outras, que exigem, para compreender a sua lógica, um olhar atento e não contemplativo, o que é uma façanha perante o magnetismo animal de Sofia Loren, que parece sempre aparecer sem nunca desaparecer, imagem fixa (como se fala de ideia fixa) que capta todos os olhares. (...)
Stéfani de Loppinot
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

THE LIFE OF JUANITA CASTRO de Andy Warhol -09.11.2009


(...) É impossível, no desconhecimento da versão propriamente teatral da peça de Tavel, discernir a que ponto  The Life of Juanita Castro é a peça ou uma sua substituição por uma espécie de denúncia da ordem teatral - mormente pela presença do próprio Tavel, debitando o texto que as suas actrizes devem dizer e que elas depois repetem (mesmo com algumas dificuldades nas frases em castelhano), com um mínimo de afectação mas não totalmente isentas de um esforço de “impersonation”. (...)
Por outro lado, toda a “representação” é feita em função de uma câmara (ou de uma suposta câmara) situada em frente às actrizes, que estariam portanto numa posição de absoluta frontalidade. Só que essa câmara, real ou imaginária, não é a câmara de Warhol nem corresponde ao ponto de vista do enquadramento - o que gera um efeito estranhíssimo sempre que Tavel pede às actrizes (...) que olhem “para a câmara”. Ficamos sempre de lado, há, chamemos-lhe, um ponto de vista lateral sobre a frontalidade, e    é como se fosse a própria “denúncia da representação” a ser “denunciada”, como se afinal de contas ela fosse ainda apenas uma parte da “representação”. No fundo, tudo tende para aí, e nem referimos o mais óbvio e mais saliente, a absoluta dissociação entre as “personagens” e os corpos que supostamente as representam. (...)
Luís Miguel Oliveira
Folhas da Cinemateca
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

TOÂ de Sacha Guitry - 09.11.2009


(...) Guitry recordando-se de Sarah Bernhardt (também citada em Toâ): “Vi Sarah Bernhardt, uma noite, falando comigo nos bastidores, com a mão sobre o puxador da porta de um cenário, e acabando a frase enquanto atravessava o umbral dessa porta. Vi-a portanto passar da cidade ao palco, da mulher que ela era à personagem que ia ser - sendo ainda uma e, no entanto, já a outra. Isso não durou mais que um segundo - mas durante esse segundo, ela foi duas mulheres - e como desempenhava o papel de uma personagem cruel, ela teve para comigo, no fim de contas, um gesto afectuoso que era desmentido por um olhar feroz - dando-me assim o testemunho prodigioso de um mimetismo instantâneo” . E o próprio Guitry em Toâ, capaz de passar enquanto o diabo esfrega um olho do “eu” à “representação”,  quando, tendo perguntado a Marconi se podia enfim começar a desempenhar o papel para o qual estava no palco, subitamente, como um sprinter reagindo ao tiro de partida, encadeou o seu texto a uma tal velocidade - e do mesmo modo o corpo, quer dizer, sem a ajuda de um puxador de porta - ao mesmo tempo imóvel e já longe, que aqui se renuncia a descrever o efeito produzido sobre o espectador por uma tamanha “transformação à vista”. (...)
Bernard Bénoliel
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

terça-feira, 3 de novembro de 2009

UKIGUSA (Ervas Flutuantes) de Yasujiro Ozu - 07.11.2009


(...) Ao abrir o filme  reparamos na parecença que há entre uma garrafa e um farol e, daí para a frente,  notamos que, se não nos chamarem a atenção, reparamos em muito pouco. E que se calhar nunca demos a devida atenção ao vermelho da caixa do correio, do gelado, dos estandartes, das flores, e do interior de um guarda chuva, nem ao verde, ao cinzento, ao castanho das montanhas, das casas, dos kimonos, e de outras cores como o azul do mar e a cor da chuva. E como todas elas estão dentro e fora de nós.
E ficamos também a reparar da importância da forma do fumar, do abanar do leque, e de outras formas de fazer, que nos contam histórias, que as palavras não conseguem, mas nos fazem viajar no vento por cima do mar.
Desse mar, a que pertence o farol e donde virá o teatro.
Quando o teatro chega, tudo se transforma, a alegria transvasa, e quando ele parte, nada fica como dantes. O teatro é assim, agitador, há sempre qualquer coisa que sucede, que deixa as vidas diferentes. (...)
Bibi Perestrelo
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

ZANGIKU MONOGATARI (Os Contos dos Crisântemos Tardios ) de Kenji Mizoguchi - 07.11.2009


(...) Recorramos a Gérard Legrand (Lumière, rituel, l'amour in Positif nº251, Fev. 1982) para notar a predominância dos décors horizontais que repetem a estrutura cenográfica do kabuki, por vezes atingindo a abstracção, de que são exemplo os planos em que durante uma das três representações teatrais do filme umas personagens olham para a câmara através de uma espécie de cortina em ripas que se interpõe entre elas e o ecrã como um véu que o atravessa em comprimento produzindo um efeito de scope. A predominância desta horizontalidade, favorecida pela estrutura da casa tradicional japonesa, permite a organização do espaço no interior do plano, particularmente evidente na sequência em que Kiku procura Otoku nos compartimentos do comboio, assumindo a câmara uma posição paralela à do personagem cujo movimento, descrevendo direcções contrárias, segue.  (...)
Maria João Madeira
Folhas da Cinemateca
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

LE JEU DES VOYAGES 1-4 de Jean-André Fieschi - 07.11.2009


Aquilo chama-se Le Jeu des Voyages . Trata-se de facto de um jogo, em que se pode tirar a carta “Níger” e dar consigo numa piroga sobre esse rio em cheia, atapetado de algas de jade, a carta “Cuny” e seguir o actor até “Le Savon Noir”, a quinta de Civry-la-Forêt onde Anne de Craon e a sua filha Violaine viveram o tempo em que  L’ Annonce faite à Marie de Claudel adquire carne e imagem de cinema. Podemos…          
É um jogo, mas é primeiramente um filme de vinte horas e picos, que se apresenta até ver sob a forma de vinte e sete cassetes. É também um diário, “regra do jogo” como o que Michel Leiris manteve ao longo da vida, e é um romance/folhetim, ou melhor, com os seus reencaminhamentos de um tomo para outro, uma outra Comédie Humaine . A dos últimos anos do séc. XX, tal como se representou por e à volta de um homem: Jean-André Fieschi. Doze anos (de 1987 a 1999) de trabalho, de viagens, de farniente, de buracos negros, de amor e de amizades. (...)
Émile Breton
Cinéma 09 - ed. Leo Scheer
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

L'ANNONCE FAÎTE À MARIE de Alain Cuny - 07.11.2009


(...) tantos temeram a adaptação de Cuny da peça de Claudel, pensando que o actor iria fazer uma obra académica, “teatral”, pomposa e solene. Por isso, desde os anos 60 (quando Cuny apresentou, pela primeira vez, a projecto) aos anos 90 (em que finalmente o realizou) tantas e sucessivas vezes se recusaram a apoiá-lo. Por isso, enorme foi a surpresa quando, concluído o filme, se verificou que este era o contrário de uma adaptação “literal” ou “convencional” e que antes figurava - e figura - como uma das mais fulgurantes  transposições da linguagem teatral na linguagem cinematográfica, do mundo do teatro no mundo do cinema. (...)
João Bénard da Costa
Folhas da Cinemateca
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

SIMONE BARBÈS OU LA VERTU de Marie-Claude Treilhou - 07.11.2009


(...) Como conjugar uma verdade indiscutível na pintura dos sentimentos e das situações com a recusa de uma chantagem à autenticidade? O dispositivo (chamemos-lhe assim) adoptado poderia constituir uma solução. Três partes, mas também três lugares cuja leitura paradoxal não pode negar-se. O filme adiciona, assim, três sequências, três momentos numa noite de Simone Barbès, a “heroína” do filme, incarnada por Ingrid Bourgoin. O primeiro segmento situa-se no hall de um cinema pornográfico, o segundo num bar nocturno de lésbicas, o terceiro no carro de um desconhecido que propõe à jovem levá-la a casa. Três lugares intensamente ligados à realidade (da época, sobretudo, quanto aos dois primeiros) e ao mesmo tempo três lugares “artificiais” pelo facto de condensarem toda uma dimensão teatral, mesmo se esse teatro também faz parte da vida. (...)
Jean-François Rauger
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

TANGO de Zbigniew Rybczynski - 07.11.2009


(...) O filme é constituído por um único plano durante o qual a câmara permanece fixa. No ecrã vemos uma sala de dimensões reduzidas, com 4 aberturas para fora-de-campo (3 portas e 1 janela). Em cena vão entrando personagens: um rapaz vem buscar uma bola que acabou de entrar pela janela. A sua acção dura exactamente 12 segundos e recomeça assim que acaba. Em ciclo. Irá repetir-se 36 vezes. O 37º ciclo terá um final diferente.(...)
As acções apresentam-se como um elenco de gestos prováveis e vulgares no quotidiano de uma sala que aparece como um palco. São, obviamente, gravadas no mesmo espaço mas em tempos diferentes. Aparentam simultaneidade física. O autor parece querer estabelecer uma linha de indecisão palpável entre a ilusão credível de uma cena fotografada, onde se movem personagens reais, e a evidência de que tais personagens nunca se encontram entre si nas suas trajectórias no interior do espaço exíguo: a solidão apesar da multidão, a estranheza apesar dos gestos repetidos e familiares.(...)
Marina Estela Graça
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

EL ÁNGEL EXTERMINADOR de Luis Buñuel - 06.11.2009


(...) O mais estranho de tudo é certamente a fronteira invisível que separa os convivas reunidos no salão, da sala de jantar vazia. É a mesma ribalta que, com uma força inelutável, separa os espectadores do palco. (...)
Jean Breschand
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

HIS NEW JOB de Charles Chaplin - 06.11.2009


(...) Temos duas séries de planos que conservam a memória de uma frontalidade primitiva - “frontalidade”, significando a proximidade com o enquadramento do palco à italiana: um chão, duas paredes, uma de cada lado, um telão em fundo, inexistência de tecto, uma personagem de pé: o todo centrado. Estamos, pois, perante duas salas contíguas, cada uma olhada como um espaço cénico em si. Um pouco como se pedíssemos ao público de um teatro, de cada vez que uma personagem sai pela esquerda ou pela direita, para passar para uma sala contígua para ver a continuação da peça num outro palco. (...)
Jean Breschand
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

DAY OF THE OUTLAW (Homens de Gelo) de André de Toth - 06.11.2009


(...) Os espaços parecem tão vazios no seu interior como no exterior que os rodeia. The Day of the Outlaw é, à partida, um filme sobre o fim das coisas. O destino das personagens parece estar traçado e muito do trabalho do filme, pelo menos no seu início, apresenta-nos isso mesmo. Arrumar o espaço para mostrar os seus limites, introduzindo, sem perder tempo, a ameaça que não tarda a surgir com a invasão do grupo de foragidos liderados pelo capitão Bruhn, um homem ferido mortalmente, com as horas contadas, transportando consigo a memória e a culpa de um massacre, fugindo com os seus mercenários às consequências da justiça  dos soldados do Norte.
O filme de De Toth é construído a partir de um princípio simples e poderoso: o de que não existe tal coisa como um exterior no cinema, na imagem cinematográfica, de que tudo é interior, contido no limite da imagem. (...)
Ricardo Matos Cabo
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

THE FEMALE OF THE SPECIES de David W. Griffith - 06.11.2009

domingo, 1 de novembro de 2009

LES CARABINIERS de Jean-Luc Godard - 05.11.2009


(...) o essencial de Les Carabiniers é a sua encenação da guerra. Sobre a forma alegórica dessa encenação talvez não valha a pena incidir muito: ela é tão inteligente como singularmente transparente (e, na sua progressão, terrivelmente lógica). Mas, à margem da alegoria, Les Carabiniers tem o seu principal golpe de asa na forma como prolonga o seu artificialismo, a sua recusa do naturalismo, num trabalho formal de que se pode dizer ser uma “acção” sobre os “nervos” do espectador - e referimo-nos, claro, à bruitage, à presença constante de ruídos de campo batalha, rajadas de metralhadora e explosões, fundamentais na criação de um ambiente altamente agressivo.
E depois, naturalmente, é preciso frisar que há aqui dois momentos “clássicos” na filmografia godardiana: a cena do cinema, “emulação” da “virgindade” do espectador dos Lumière, e, perto do fim, a colecção de fotografias que foi tudo o que as personagens trouxeram da guerra.
Luís Miguel Oliveira
Folhas da Cinemateca
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

LES AFFICHES EN GOGUETTE de Georges Méliès - 05.11.2009


(...) Em Les Affiches en Goguette temos três planos narrativos, constituídos por três alterações do cenário: os cartazes propriamente ditos; os cartazes animados; a grade de um jardim público por detrás dos cartazes. Não será exagero dizer, sobretudo tratando-se de um filme do primeiro homem de teatro a fazer cinema, que estes três planos são: a cortina; o palco; os bastidores de um teatro. E cada quadrado ou rectângulo onde está um cartaz, num total de sete, é como uma pequena tela de cinema. Além disso, toda a acção também é uma típica cena de teatro de marionetas à francesa, em que o polícia é a eterna vítima do polichinelo. (...)
Antonio Rodrigues
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

LA CHIENNE de Jean Renoir - 05.11.2009

 
(...) Um dos pontos centrais da sua obra [Jean Renoir] nos anos 30 é a tensão entre um fundo naturalista e a teatralização da narrativa (nos anos 50, depois de The River, a teatralização sobrepujou quase por completo os outros aspectos do seu cinema). Temos em La Chienne uma espantosa afirmação disto, quase sob a forma de uma declaração de princípios. O filme é certamente uma obra-prima “realista”, a começar pelo uso do som directo, que enche a banda sonora dos ruídos das ruas de Paris e também por uma multiplicidade de pormenores humanos e de adereços, que transpõem para a tela a realidade da cidade onde a acção se situa. Basta comparar os motoristas de táxi de La Chienne ao de Quatorze Juillet, de René Clair (os de Renoir parecem “verdadeiros”) ou pensar em pormenores visuais, como o plano sobre a espátula que tira o excesso de espuma dos copos de cerveja, para sentirmos o sólido fundo realista, naturalista, de La Chienne. Mas esta obra tão cheia de pormenores realistas (e não apenas pormenores, pois o som directo faz parte da própria estrutura do filme), é enquadrada por imagens de um teatro de marionetas. No plano de abertura, personagens do guignol, que podem ser vistos em quiosques de quase todos os jardins de Paris, apresentam-nos o filme como se apresentassem um espectáculo para crianças, porém com outras palavras: “Não é um drama, nem uma comédia, não há moral e os heróis são pessoas comuns”. Ditas por uma marioneta, estas palavras perdem qualquer ênfase. E o último plano do filme mostra-nos a cortina do teatro de marionetas que se fecha. Em suma, assistimos a uma espécie de espectáculo de teatro de títeres e ao mesmo tempo a um filme “realista”, que proclama nos seus planos de abertura e de conclusão que o que vamos ver é teatro, que não tem nada a ver com a “realidade”: “o espectáculo vai começar”.
Antonio Rodrigues
Folhas da Cinemateca
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

PASSEIO COM JOHNNY GUITAR de João César Monteiro - 05.11.2009