(...) Um dos pontos centrais da sua obra [Jean Renoir] nos anos 30 é a tensão entre um fundo naturalista e a teatralização da narrativa (nos anos 50, depois de The River, a teatralização sobrepujou quase por completo os outros aspectos do seu cinema). Temos em La Chienne uma espantosa afirmação disto, quase sob a forma de uma declaração de princípios. O filme é certamente uma obra-prima “realista”, a começar pelo uso do som directo, que enche a banda sonora dos ruídos das ruas de Paris e também por uma multiplicidade de pormenores humanos e de adereços, que transpõem para a tela a realidade da cidade onde a acção se situa. Basta comparar os motoristas de táxi de La Chienne ao de Quatorze Juillet, de René Clair (os de Renoir parecem “verdadeiros”) ou pensar em pormenores visuais, como o plano sobre a espátula que tira o excesso de espuma dos copos de cerveja, para sentirmos o sólido fundo realista, naturalista, de La Chienne. Mas esta obra tão cheia de pormenores realistas (e não apenas pormenores, pois o som directo faz parte da própria estrutura do filme), é enquadrada por imagens de um teatro de marionetas. No plano de abertura, personagens do guignol, que podem ser vistos em quiosques de quase todos os jardins de Paris, apresentam-nos o filme como se apresentassem um espectáculo para crianças, porém com outras palavras: “Não é um drama, nem uma comédia, não há moral e os heróis são pessoas comuns”. Ditas por uma marioneta, estas palavras perdem qualquer ênfase. E o último plano do filme mostra-nos a cortina do teatro de marionetas que se fecha. Em suma, assistimos a uma espécie de espectáculo de teatro de títeres e ao mesmo tempo a um filme “realista”, que proclama nos seus planos de abertura e de conclusão que o que vamos ver é teatro, que não tem nada a ver com a “realidade”: “o espectáculo vai começar”.
Antonio Rodrigues
Folhas da Cinemateca
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009