quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Edição 2012 - Programação Inicial


da programação inicial de "Cinematografia-Musicalidade 2" foram sómente apresentados uma parte dos filmes previstos, sobretudo por razões administrativas que impediram a vinda das copias dos filmes em azul.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

terça-feira, 6 de novembro de 2012

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

13 de Novembro


SIDDESHVARI de Mani Kaul - 13.11.2012 - 21h30


Este filme extremamente ambicioso, ao mesmo tempo sedutor e hermético, retraça a vida de Siddeshwari Devi (1903-77), considerada a maior representante no século  do género musical clássico thumri. (...) À medida que o filme progride, a presença de Siddeshwari torna-se cada vez mais intangível: a atriz que a representa desaparece subtilmente do écran, vemos imagens documentais da cantora, já idosa, num écran de televisão e no fim perdura apenas a sua voz, a sua essência, aquilo que não tem imagem, o som, a música.
Este fecho inscreve-se na lógica de um filme elaboradíssimo que "celebra a transfiguração da vida em música". A música é a própria matéria de um filme cujo desenrolar é "musical", na medida em que não segue as regras da causalidade, na medida em que tece um fluxo contínuo e em que capta a essência do tempo, pois a música é a arte do tempo. Mani Kaul deixa de lado dois aspectos centrais do cinema convencional: a estrutura narrativa tradicional e os diálogos directos. Como observou Partha Chatterjee num artigo significativamente intitulado "Uma Questão de Artesanato", Mani Kaul assumiu posições estéticas "diametralmente opostas ao estilo predominante, que é favorecido pelo grande público": importância relativamente menor do texto escrito e da causalidade, recusa da empostação dramática dos atores em favor de uma dicção lenta, densidade de uma banda sonora não-naturalista, uso "orgânico e eloquente da cor, ao invés de simbólico ou decorativo". Cada componente técnico é extremamente pensado, não apenas por perfeccionismo mas também porque Mani Kaul considera cada um dos seus filmes como uma reflexão sobre o próprio cinema. Tudo isto é atingido com serena maturidade em Siddeshwari, que é a obra de um cineasta que sabe e não de um cineasta que busca.  (...)
Antonio Rodrigues
in "Folhas da Cinemateca"

The River (O Rio Sagrado) de Jean Renoir, apresentado por Renaud Legrand, filmado por Pierre Léon


Renaud Legrand apresenta "The River" (O Rio Sagrado) de Jean Renoir from O Cinema a volta de cinco artes on Vimeo.
Filmado por Pierre Léon, Renaud Legrand apresenta "The River" (O Rio Sagrado) de Jean Renoir no âmbito de "O Cinema à volta de cinco Artes - cinco Artes à volta do Cinema". ©Pierre Léon/Renaud Legrand

THE RIVER (O Rio Sagrado) de Jean Renoir - 13.11.2012 - 19h00


(...) Embora o filme siga este lento fluir do tempo e do rio, avance constantemente na estabilidade e relatividade do presente, Renoir também conhece a complexidade do tempo, ou a percepção que temos dela, não esquece que o tempo actual é “ao mesmo tempo” o passado, as recordações, as coisas inscritas em si, por muito “homem novo” que sejamos, e que surgem à superfície do rio. Esta presença do passado, esta combinação em cada um de nós que não respeita a cronologia, exprime-a ele com a voz off - a pequena Harriet que se torna adulta e que não vemos, um fantasma na ficção, tornando emblemática a figura da infância - que conta no passado enquanto a imagem mostra o presente do passado, ou o passado no presente. Simultaneamente, coloca o espectador num momento entre, nesta actualidade da recordação, um tempo intemporal.
(...)
E Renoir rejubila com a cor - não chegou mesmo a mandar pintar a vegetação por achar que faltava brilho? Uma utilização da cor sinfónica, o bater ribombante de pratos, além de um dueto com a música, quer aquando da festa de Diwali com fogueiras e Convite à Valsa de Weber, ou para proclamar a chegada da primavera, com árvores floridas, bombardeamento de giz colorido e percussões desenfreadas. A música de O Rio Sagrado é principalmente a das circunstâncias: ouvimos o que as personagens ouvem, folclore indiano nas ruas, na casa o Convite à valsa na grafonola, Schumann tocado ao piano por uma das crianças, mas não música de filme. Antes uma música documental, captada ao vivo durante a filmagem, como que roubada à realidade desta família de ficção.
Renaud Legrand
Paris, Outubro de 2012
in catálogo "cinematografia - musicalidade 2"

12 de Novembro


PACHAMAMA - Nuestra Tierra, de Peter Nestler - 12.11.2012 - 19h00


(...) O filme é banhado por vários momentos musicais de uma intensidade [...] misteriosa, em que se adivinham relações subterrâneas. Regresso do tocador de harpa que ouvimos no início do filme e aparição do seu filho a tocar o ritmo no ventre do instrumento. A sua música já foi escutada duas vezes, é difícil de ter essa consciência, mas a perturbação desse reconhecimento está presente. Do mesmo modo, o plano sequência de uma festa de carnaval índia, a sua repartição em diferentes grupos no espaço, o seu lento movimento lateral anuncia o ritmo, a estrutura e o sentido da abertura musical que se segue: uma fanfarra africana em que tambores, flautas e címbalos ocidentais vão de par em par alegremente com trombetas feitas de abóboras e apitos de folha de laranjeira. O aspecto carnavalesco desta nova cena deve-se à mistura de instrumentos a priori incompatíveis, frutos da terra equatorial ou lembranças desusadas do colonialismo, e ainda para mais tocados por descendentes de escravos africanos - o canto do carnaval, “Lo tengo o no lo tengo”, de uma energia extraordinária, dito com vivacidade. Uma panorâmica parte da fanfarra, passa por um planalto deserto, deixa-nos ver ao fundo do plano cinco crianças que brincam em redor do fogo, antes de se reunir com o pequeno grupo de mulheres que dançam, cada uma com uma garrafa de vidro à cabeça. Ao longe, quase despercebidas, estendem-se as curvas de um rio. Para partir de Quito, é na realidade necessário ir por uma passagem de um pequeno canal aberto pela mão do homem, comparável aquele de Vidor em Our Daily Bread, para chegar então ao rio, descendo o seu curso pouco a pouco até ao rio, o Amazonas, antes de chegar ao Pacífico. Os cursos do rio acompanham Pachamama como a sua música, tornam-se cada vez mais presentes, amplos, mantendo-se discretos. O rio está por detrás do canto triste de um homem ainda jovem sentado numa piroga. Aquilo que canta em quéchua permanece misterioso, apenas persiste a sua figura melancólica, irrigando o plano seguinte em que vemos a passagem da bruma sobre o vulcão. Pachamama chega ao fim, aqui está de novo a harpa do homem velho e as suas notas iterativas e ligeiras como cursos de água, e percebemos finalmente que o filme se dirigia na sua totalidade para este plano final de uma serenidade miraculosa, abrindo uma brecha: esta melodia que escutámos várias vezes é tocada tradicionalmente quando morre uma criança. Não saberemos se acompanha um luto verdadeiro neste momento ou se se trata apenas de uma ideia da infância e da morte. O plano surge apesar disso como uma revelação, como a soma de tudo o que lhe precedeu, nascimento, vida e morte pegadas aos ramos das árvores, às roupas inchadas pelo vento, aos fardos de palha.(...)

Stéfani de Loppinot e Ricardo Matos Cabo
in Cinema 014 - automne 2007
Éditions Léo Scheer
retomado 
in catálogo "cinematografia - musicalidade 2"

MUTIRÃO de Leon Hirszman - 12.11.2012 - 19H00


Mutirão é o primeiro de um conjunto de três documentários agrupados por Leon Hirszman com o título “Cantos de Trabalho”, filmes que realizou entre 1974 e 1976. Os três centram-se sobre os cantos entoados por trabalhadores rurais no nordeste brasileiro(...). Mutirão foi filmado em Chã Preta, na região de Viçosa em Alagoas, durante a produção de S. Bernardo, uma longa-metragem de ficção de Hirszman que, tendo sido interditada pela censura, com os anos se tornou um clássico do cinema brasileiro. Como é explicado no início do filme, “mutirão” é o termo muito usado no Brasil para caracterizar movimentos comunitários que se baseiam na ajuda mútua prestada gratuitamente. É uma expressão originalmente associada ao trabalho do campo ou da construção de casas populares, em que todos colaboram sem hierarquias, que, na realidade, são os dois tipos de trabalho que vemos documentados neste filme de Hirszman, que assim acompanha todo o sentido da expressão. Mutirão regista o canto colectivo de um conjunto de “mutirões”, um canto que convoca com uma enorme mistura de influências: indígenas, europeias, africanas, que espelham as misturas culturais do próprio Brasil. (...)
Joana Ascenção
in "Folhas da Cinemateca"

10 de Novembro


THE LONG DAY CLOSES de Terence Davies - 10.11.2012 - 21h30


O cinema de Davies é, essencialmente, um cinema “de instantes” que podem fazer coincidir o máximo de beleza e sonho com a mais dolorosa crueldade, (...) E no entanto, todo o filme se encontra banhado pela mesma luz difusa, transfiguradora e mágica (e os mesmos belíssimos raccords: a fuga final no comboio) que se encontra em Distant Voices, Still Lives e The Long Day Closes. Sendo um cinema de “instantes”, com o natural “peso” que cada cena tem em. si mesma, é evidente que a sua encenação terá uma forte carga “teatral”. Cada cena vale em si mesma como um “número” (e é, quase sempre, pois as cenas estão quase sempre ligadas a uma canção), sendo o filme construído como se de um musical se tratasse. Se se puder falar de uma “música da memória” expressa no cinema ela encontra a sua expressão maior nos fumes de Davies (..) e do francês Jacques Demy. A diferença principal entre os dois está no facto de Demy ter usado músicas originais para os seus filmes enquanto Davies as vai buscar ao passado. Mas também neste caso é a memória que impõe a escolha, vindo as melodias concluir o trabalho de evocação, ligando agora o espectador ao tempo evocado pelo realizador.

Com The Long Day Closes Terence Davies evoca, de uma forma transfigurada, a sua infância em Liverpool nos anos 50. A memória individual selecciona momentos da vida que “enriquece” com outras contribuições acabando por edulcorar o resultado final. A de Davies não é excepção e todos os momentos, mesmo os mais dolorosos, surgem transformados em imagens poéticas, sejam na escola, na igreja, em casa ou no interior dos cinemas e a música tem um papel decisivo na “mudança” reforçando o conteúdo poético de cada cena. Mas se cada cena em si denota uma poderosa componente teatral (bem sugestiva e brilhante na cena da festa de Natal em que Bud olha para a porta num campo/contracampo perfeito, e ela se abre lentamente, como uma “cortina” de palco, para mostrar a família à mesa virando-se para ele e saudando-o), a forma como Davies passa de uma para outra e trabalha o conjunto é eminentemente cinematográfica, fazendo os raccords em movimento, que com os da câmara em si constroem uma coreografia de sonho. (...)
Manuel Cintra Ferreira,
in "Folhas da Cinemateca"

THE TRUE STORY OF LILI MARLENE de Humphrey Jennings - 10.11.2012 - 21h30


The True Story of Lili Marlene, de Humphrey Jennings, apresentado por Bernard Eisenschitz

Bernard Eisenschitz apresenta "The True Story of Lili Marlene" de Humphrey Jennings from O Cinema a volta de cinco artes on Vimeo.

Bernard Eisenschitz apresenta "The True Story of Lili Marlene" na Cinemateca Portuguesa no âmbito do ciclo de cinema "O Cinema à volta de cinco Artes - cinco Artes à volta do Cinema", no sábado 10 de Novembro de 2012. ©Cinemateca Portuguesa-Temps d'Images

LES BERCEAUX de Dimitri Kirsanoff - 10.11.2012 - 21h30


Les Berceaux (...) é uma das Cinéphonies de Émile Vuillermoz (...), “ensaio” do que viriam a ser os clips musicais e realizadas por nomes tão impressivos como Max Ophuls e Marcel L’Herbier para além de Dimitri Kirsanoff (...). Les Berceaux é também um filme magnífico, em que a “Cinefonia” dá lugar a uma visão poética de cinco belíssimos minutos de cinema.

Nos primeiros dois, ao som de um canto sem palavras, os planos vão-se sucedendo como retrato de uma paisagem marinha, o mar e a costa, as nuvens, as embarcações e os seus mastros, as copas das árvores batidas pelo vento numa fabulosa fotografia (de Boris Kauffmann) de contraste luminoso e recortes em contra-luz. Nos três seguintes, às primeiras notas de piano, o quadro fixa-se numa janela que se destaca de um fundo negro e para além de cujos vidros se vêem as imagens de um barco. A câmara recua descobrindo o quarto onde uma mulher canta embalando um berço, imagem griffithiana de perspectiva assombrada pela transposição visual das palavras cantadas de lamento no ecrã em que a janela se transmuta, primeiro para lá da quadricula de madeira sobre os vidros, depois abrindo-se para as imagens em retroprojecção do mar, da faina, da tempestade. Num movimento inverso ao precedente, a câmara volta a aproximar-se da janela/ecrã permitindo que o plano seja invadido pelas suas imagens. Intercalam-se então planos da mulher junto ao berço, da janela, das imagens nela projectadas, em sobreposições transbordantes acompanhando a canção cujo desfecho requer uma última aproximação da câmara à janela no plano geral que dá a ver o fecho das portadas como raccord do fundido a negro de fim.

Maria João Madeira
in "Folhas da Cinemateca".

domingo, 4 de novembro de 2012

9 de Novembro


O SOM DA TERRA A TREMER de Rita Azevedo Gomes - 09.11.2012 - 19h00


(...) A Rapariga é uma personagem fulcral, apesar de não dizer uma única palavra ao longo de todo o filme, e nem sequer ficarmos a saber o seu nome. Por um lado, ela preenche uma parte essencial do universo afectivo de Luciano. Por outro lado, é através dela que acontece o cruzamento entre o mundo da ficção literária (em que existe Luciano) e o mundo da vida real (em que existe o Professor).
Mas o cruzamento fundamental entre os dois mundos materializa-se na carta escrita por Luciano, da qual a Rapariga não chegará a ter conhecimento, e que, por um acaso, será finalmente lida pelo Professor. É uma carta na qual, em grande parte, se repetem palavras já ouvidas no monólogo interior de Luciano no primeiro encontro com a Rapariga, no comboio. Ocorre-me um símil entre esta carta e a echarpe de Jennie no assombroso filme de William Dieterle The Portrait of Jennie (1948). Tal como neste último a echarpe encontrada nos rochedos do mar tempestuoso em que Jennie se afogara é uma prova de que ela, a mulher-aparição, de facto existiu, a carta de Luciano testemunha que ele assumiu uma existência que extravasa a da personagem de ficção literária. É certamente por isso que, na penúltima sequência do filme, quando Alberto caminha à beira mar, vemos fugidiamente Luciano, de costas, olhando o mar.
Quando o Professor começa a ler a carta, é a voz de Luciano que ouvimos. Mas por duas vezes essa voz alterna brevemente com a de Alberto. E é importante notar o profundo contraste entre as duas vozes. Dito por Alberto, o texto soa sombrio na sua voz áspera. Mas, na voz jovem e macia de Luciano, esse mesmo texto, sem deixar de estar marcado pela melancolia, torna-se amável no sentido literal da palavra.
Há apenas duas personagens a que não está associada qualquer música: Cipriano e o Professor. Quanto ao primeiro, posso interpretar essa falta como consequência de ele permanecer como uma personagem, de algum modo, marginal em relação ao cerne da acção.
É completamente diferente o caso do Professor. No início da sequência em que o vemos no seu gabinete, ouvimos ainda o resto de um fragmento de Mozart tocado por Isabel numa sequência anterior. Mas, com essa breve excepção, não há música associada à personagem. Não há lugar para isso no longo monólogo que constitui a sua intervenção esssencial. Trata-se de um plano “incrível”. Um plano fixo com duração de quase sete minutos, brilhantemente (eu diria mesmo heroicamente) suportado por Duarte de Almeida e Sara Marques. Estamos num café. Sentada ao balcão, e vista de perfil, a Rapariga limita-se a olhar em frente. Enquanto o Professor, mais distante, sentado a uma mesa, lhe fala sem saber se está a ser ouvido. E aqui o actor Duarte de Almeida é transcendido pelo seu verdadeiro ego, João Bénard da Costa. É um monólogo denso de referências culturais, não ditas como quem despeja uma lição de cultura, mas que fluem com naturalidade. Com aquela naturalidade e aquela elegância a que Bénard da Costa, ao longo de anos, nos habituou nas suas crónicas magníficas. Um quadro de Van Eyck, Jean-Paul, os “encontros automáticos”, a Imitação de Cristo, os acasos (que “são a única coisa que não acontece por acaso”)… Este monólogo do Professor não tem música. Mas está impregnado de musicalidade nas palavras e nos conceitos.(...)

Carlos de Pontes Leça
Lisboa, Setembro de 2012
in catálogo "cinematografia - musicalidade 2"

Carlos de Pontes Leça e Rita Azevedo Gomes apresentam O Som da Terra a Tremer de Rita Azevedo Gomes


Carlos de Pontes Leça e Rita Azevedo Gomes apresentam O Som da Terra a Tremer from O Cinema a volta de cinco artes on Vimeo.
Carlos de Pontes Leça e Rita Azevedo Gomes apresentam "O Som da Terra a Tremer" de Rita Azevedo Gomes na Cinemateca Portuguesa no âmbito do ciclo de cinema "O Cinema à volta de cinco Artes - cinco Artes à volta do Cinema", no sábado 10 de Novembro de 2012. ©Cinemateca Portuguesa-Temps d'Images

L'INCONSOLABLE de Jean-Marie Straub - 09.11.2012 - 19h00


(...) “O Inconsolável” é um diálogo que se desenrola entre Orfeu, que acaba de regressar dos infernos, e Baca, que o questiona sobre o seu estado de espírito e seu amor por Eurídice. Este diálogo apresenta-nos uma versão inesperada do mito de Orfeu e Eurídice, em que Orfeu, na viagem de regresso do mundo dos mortos para onde partiu para resgatar Eurídice, decide romper voluntariamente com condição que a faria ressuscitar, devolvendo-a ao “reino do nada”. No livro e no filme de Jean-Marie Straub, em contraste com um Orfeu enamorado e profundamente infeliz, encontramos um homem lúcido, que prefere não trazer Eurídice para o mundo dos vivos face à inevitabilidade de esta ter de morrer uma segunda vez, uma vez que não há consolação possível para a morte. (...)

O modo como Straub filma [os] dois actores (...) é semelhante ao modo como filmara em Quei Loro Incontri e noutros trabalhos posteriores (...). O décor natural das colinas de Buti, na Toscânia, acolhe-os nas vestes “modernas” e nas suas poses predeterminadas, enquadradas de modo preciso e rigoroso. Impulsionando mais uma vez a colisão de temporalidades distintas (o presente dos actores e da natureza italiana é confrontado com o tempo mítico das suas personagens), Straub preserva e desenvolve aqui o essencial do seu cinema: a fidelidade e a importância do texto que quase é cantado por este par impressivo; a materialidade do real, expressa pelas manifestações naturais e pelos jogos de luz e de sombra que ancoram as imagens no mundo; a preservação de quadros definidos e de um número limitado de posições de câmara que permitem que, como escreveu Pavese no seu “prefácio” aos “Diálogos”, um “mesmo objecto” se revele num dado momento e nos pareça “miraculoso”. (...)
Joana Ascensão
in "Folhas da Cinemateca"

8 de Novembro


WILLOW SPRINGS de Werner Schroeter - 08.11.2012 - 21h30


(...) O cinema de Schroeter tem como chave de interpretação a relação entre imagem e som, sendo este último constituído principalmente pela música. Será difícil encontrar uma obra cinematográfica onde a música desempenhe o papel de construtora de um sentido como o que tem na de Schroeter. Em particular a ópera que percorre toda a obra do realizador e lhe impõe a sua estrutura narrativa, seja na construção de momentos de êxtase em que os seus filmes são abundantes, como pela apropriação de imagens e figuras particulares do “bel canto” (os seus primeiros filmes em 8mm têm em Maria Callas um culto apaixonado, Der Tod der Maria Malibran refere-se a uma lendária cantora do século passado) “vampirizadas” e transfiguradas na perturbante presença da sua actriz fétiche, Magdalena Montezuma.(...)

A própria forma como a pouco e pouco se foi construindo Willow Springs corresponde a uma “narrativa” “schroeteriana”: uma abordagem pelo exterior, cenários e rostos (e sons, principalmente sons, de novo a ópera), para chegar ao âmago, que é a história da relação de três mulheres que vivem isoladas no deserto..(...)

Manuel Cintra Ferreira
in "Folhas da Cinemateca"

DIE GROSSE LIEBE (O Grande Amor) de Otto Preminger - 08.11.2012 - 19h30


(...) Quando Die Grosse Liebe começa, dir-se-ia que o filme acaba de acordar e que o empurraram em pijama para a boca de cena. A sequência de exposição no comboio, em que a câmara passa de um grupo de viajantes para outro, trangalhadanças e desajeitada, é uma colagem aos soluços de planos isolados. Vemos um homem ainda novo mas marcado, o corpo como que entravado por fios invisíveis, mudo e opaco, reticente ao palrar amável dos vienenses: levanta-se, dirige-se para a janela, uma folha de papel cai-lhe do bolso e os viajantes indiscretos descobrem um telegrama que anuncia ao homem a morte da mãe quando ele era prisioneiro de guerra em Tiflis. O telegrama data de 1917. Estamos em 1927, passaram-se dez anos e os curiosos, comovidos com este mistério entregam ao homem a sua carta fúnebre. O som, aquele som de antes da mistura, característico do período do cinema mutante onde se cruzam grandíssimos filmes como Okraina de Barnet, La Nuit du Carrefour de Renoir, Pilgrimage de Ford ou Broken Lulaby de Lubitsch, ao mesmo tempo que dilata o tempo, proporciona aquele luxo incrível que é ouvir os timbres e os ruídos que, fundidos, não teriam aquela esbeltez revigorante. As crianças tocam pente, os amáveis vienenses cavaqueiam alegremente, as suas vozes, como o coro grego, falam em lugar do herói sorridente e ferido. Esta sinfonia de timbres claros, entre Haydn e Stravinsky, sopra sobre as feridas infligidas involuntariamente pela montagem. Apesar da sua claudicação dramática esta cena faz ver, se não pressentir, o tema real do filme, o da memória solúvel na infelicidade, o do tempo que, re-escrito, dá o poder de curar e de viver feliz até à próxima amnésia colectiva.
(...)
A longa sequência, mesmo antes do happy end, que cruza a representação em casa dos Huber e a fuga de Any para casa de Frieda é um puro momento de comédia social, mistura inesperada e antecipatória do quiproquo da Collinière (em La Règle du Jeu de Renoir), da festa espanhola em Le Diable Boîteux (Guitry) até do último número de Victor/Victoria (Blake Edwards). No palco do teatrinho burguês dos Huber, já não se toma chá, mas representa-se uma comédia musical para os convidados, antes de ser revelada a notícia do noivado de Any com Theobald. Este desempenha o papel de um toureiro rodeado de mulheres jovens e atacado por uma vaca de saiote (como o cavalo do teatro isabelino). A música de Walter Landauer é extraordinária e extraordinariamente cantada pelas Singing Babies, variante feminina dos Comedian Harmonists e Hans Olden anima maravilhosamente o desajeitado Theobald.
Pierre Léon
Paris, Junho de 2012
in catálogo "cinematografia - musicalidade 2"

A TERRA VISTA DALLA LUNA de Pier Paolo Pasolini - 08.11.2012 - 19h30


(...) Vamos encontrar Toto e Ninetto como os tínhamos deixado um ano antes em Uccelacci e Uccelini, dois vagabundos nos campos e nos arrabaldes romanos. (...). São os mesmos? Sim, os mesmos Toto e Ninetto, o pai e o filho - “a humanidade inteira” segundo PPP, dois verdadeiros pícaros, sem tostão, malandros, absolutos contrapontos daquilo que seriam os cavalheiros da Itália dos anos 60, burgueses e outros financeiros. Eles são os abandonados dos tempos modernos e a sua busca, já que se trata de uma narrativa picaresca, estará - como acontecia em Uccelacci e Uccelini - semeada de ciladas, encontros, desilusões, corridas e perseguições.
(Pasolini gostava de Chaplin e não faz senão ir buscar-lhe o frenesim burlesco, os acelerados que fogem para o campo e a barraca que como em Tempos Modernos se metamorfoseia em ninho de amor, feito disto e daquilo pela varinha de condão de Paulette Godard ou de Silvana Mangano; faz de Toto, protótipo no ecrã do pequeno burguês resmungão e azedo, o seu Charlot, “quase meigo e indefeso como um passarinho; está sempre cheio de ternura e, diria eu, de pobreza física”. Ninetto, quanto a ele, é Ninetto, volúvel, juvenil, encantador insolente, ingénuo, maravilhoso.) (...)
Vagabundos, pois, e não celestes, bem terrenos (pois é da Lua que são vistos). Sim, são os mesmos Toto e Ninetto com as suas vidas feitas de pedaços de fios.(...)
O seu planeta é muito pequenino, meia dúzia de quilómetros (apesar de se encontrar no meio da trapalhada da barraca um chinês de bigode que desaparece de imediato), uma zona de terrenos baldios e de casinhas de betão e de cartão, mas é o mundo inteiro, tal como o é um candeeiro infantil onde giram pequenas paisagens, estrelas e cavaleiros. Um desfile todo em travelings que visam a distância e em corridas aceleradas que entrecortam - a menos que seja o contrário - grandes planos, cenas de máscaras e de caretas feitas aos (perante os) espectadores. E esta alternância permanente do longe e do perto, do pequeno e do grande, do mudo e do falante, da pintura e do teatro constrói-se como uma canção em que o verso seria os grandes planos, já que são eles que contam e a fuga seria o refrão, já que Toto e Ninetto serão sempre vagabundos, sempre em parte nenhuma, entre as duas águas do desenrascanço, da confusão e do salve-se quem puder paródico.(...)
Renaud Legrand
Outubro de 2012
in catálogo "cinematografia - musicalidade 2"

sábado, 3 de novembro de 2012

7 de Novembro


LANCELOT DU LAC de Robert Bresson - 07.11.2012 - 22h00


Contemplar Lancelot du Lac é também ouvir, não sem uma espécie de espanto transido, atiçado pelos cortes e pelo silêncio, essa matança e esse canto estreito e pungente, esse canto de entranhas. Este eleva-se, entre duas verdadeiras carnificinas como o sopro impressionante, muito próximo, de uma longa expiração intensa, aguda e afiada - semelhante a uma oração fúnebre, quase funesta - e centraliza-se num torneio sangrento. (...)
Deste “canto das entranhas” que a “taça lendária” recolhe, evoquemos os instrumentos - e a possível partitura.
A base, para começar, é o silêncio - como sempre muito presente e muitas vezes oprimente na obra de Bresson (pensemos nos roubos cruciais de Picpocket, 1959, ou na vigilância inicial de Mouchette, 1967). Mas, como o próprio cineasta escreveu nas suas Notes sur le cinématographe: “O silêncio é necessário à música, mas não faz parte da música. A música apoia-se nele”. Isto faz pensar no termo “pauta” musical. Como o seu nome indica, sem ser música, ela apoia a partitura e condiciona a musicalidade: a frequência, as harmonias, os temas e as variações. (...)
Todavia, qualquer silêncio, inclusive este, permanece carregado de ruídos que o obcecam de uma forma mais ou menos suave, discreta e mais ou menos confusa. Aqui, como nos outros filmes de Bresson, estes sons são, pelo contrário, muito distintos - também eles salientes. É este relevo na “pauta do silêncio” que parece conferir aos seus timbres particulares valores de notas ou, melhor dizendo, de percussões a fim de criar uma musicalidade cinematográfica própria de cada filme e de cada cena que, em segredo, se harmoniza com a força do drama, da montagem elíptica e das imagens.
Assim, o “fosso de orquestra” do filme é por isso imediatamente reconhecível na medida, pelo menos, em que repercute como centro aparente e evidente, mas também como cobertura funesta que devasta e que disfarça mais do que revela a verdade dos corações: seria o grande grupo das armas - todas elas lanças e lâminas: as espadas antes de mais, os punhais, os gládios, as flechas e as lanças do torneio na cena central. Estas pontas implacáveis batem nas armaduras como fariam as batutas em címbalos da guerra - para as fazer ressoar, mas também para as perfurar, para as rasgar, para fazer brotar delas a carne magoada ou o jorro de sangue, a exalação final.(...)
Esta tonalidade, para atingir e dar a sentir este nó lendário tingido de misticismo, começa por se manifestar através de outros sons muito concretos, importantes e recorrentes: outros timbres ou “instrumentos” que vão acompanhar o “fosso de orquestra” das armas e das armaduras, com efeitos de rima. A partir deste prelúdio, trata-se dos ruídos de passos - mais semelhantes a murmúrios - do tilintar das armaduras, dos gemidos, do crepitar do fogo, de um crocitar recorrente de corvo, sempre invisível e particularmente acentuado e, principalmente, dos ruídos de cavalos .(...)
Quem diz cavalaria, diz, de facto, cavalos e Bresson não esquece verdadeiramente esta presença fundamental: desde o início e até ao fim, insiste nos sons dos seus cascos, da sua respiração, dos seus relinchos, que se harmonizam sem se confundir com a espantosa montagem visual das suas silhuetas, dos seus flancos, das suas deslocações e, sobretudo e de forma impressionante, com a rima visual dos seus olhos exorbitados, como que aterrorizados pelo espectáculo de que, sem qualquer culpa, são portadores - mas este concerto de ressonâncias reina, sobretudo, como uma dissonância: raros são os momentos de conjunções entre imagens e sons. (...)

Florent Guézenguar
Outubro de 2012
in catálogo "cinematografia - musicalidade 2"

6 de Novembro


CASA DE LAVA de Pedro Costa - 06.11.2012 - 21h30


(...) Originalmente concebido como um remake de I Walked with a Zombie (1943) de Jacques Tourneur, o filme de Pedro Costa encontra-se a uma distância solitária dessa inspiração e do trabalho posterior do realizador - para o qual Casa de Lava (o seu segundo filme) serve de ponte. Parte narrativo, parte subversão da narrativa (como era o trabalho de Tourneur), por vezes quase um documentário (mas sobre o quê?), Casa de Lava é um monumento maravilhoso e preciso de cinema invertido, um labirinto elipticamente sombrio construído por caminhos que partem em todas as direcções em relação à câmara e ao enredo, bruscamente interrompido a meio do filme.
O percurso da própria Mariana - de início aparentemente resoluta, como Costa sugere no firme travelling lateral que a mostra a explorar o seu novo meio - torna-se obscuro e contraditório enquanto ela cruza a ilha, talvez em busca da chave da sua própria sexualidade (que também é o tema do filme, tal como o da situação difícil em que se encontra o seu doente), talvez procurando evitá-la. Tal como a sua heroína, o filme encontra-se num estado de transição perpétua. Através das indefinições da narrativa, torna-se claro que a tragédia de Casa de Lava está figurada numa oscilação interminável entre os lugares (Cabo Verde e Portugal), imóvel, num estado de exílio permanente de todas as personagens.

Chris Fujiwara

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

MAMMA ROMA de Pier Paolo Pasolini - 06.11.2012 - 19h00


LEMBRAS-TE DOS PORCOS?

não
praticamente ninguém se lembra
(neste caso há uma excepção)
eu não me lembrava dos três porcos entre os quais uma porca
é a primeira cena do filme
um salão para casamentos exterior interior dia
três belos porcos entram (intuzzando) roncando assustados desorientados
Pepe vem de chapéu na cabeça Nicola com laçarote na cauda
e Regina a desnaturada das ligas
parecem condenados à morte
uma mesa em ferradura de cavalo quarenta convidados
no meio o noivo Carmine negro como as brasas
e a noiva com o seu véu branco
à volta da família de campónios
colegas do noivo todos proxenetas
(...)

não me lembrava do carrocel em que Ettore desaparece
na pequena praça sob uma luz surreal e tão triste
essa luz dominical vagamente fúnebre sobre a pequena praça
e o carrossel

Ettore senta-se num coche
o carrossel gira uma vez duas vezes
Ettore desapareceu
o rosto de Mamma Roma fica desfeito invadido por uma angústia infantil
Ettore desapareceu do ecrã e da sua vida
ela vê-o alegria beatífica de Mamma Roma
ele afasta-se fica a ver uma coisa qualquer na montra
será que ele acredita em milagres se é certo não vai ser por muito tempo
este rapaz traz o vazio à sua volta uma vida de campos amorfos
a quem vai provar a sua existência
a um mundo cruel idiota e vazio um mundo para o qual ele não tem os instrumentos
para o tornar seu e compreender
(...)

lembrava-me desse branco demasiado branco exacerbado
sobre uma camada dupla de miséria
a miséria histórica dos burgos
e a miséria pré-histórica das suas ossadas de pedras
esse sol misto de morte e de vida de felicidade e de luto
Paso dá aos planos que ele ilumina de um modo particular
qualquer coisa de profundamente irreal a cor áspera escarlate das cerejas
como se se tivessem espalhado pela atmosfera
erva seca e demasiado espessa
esses personagens que sofrem
em jejum e ao mesmo tempo cheios de saúde
como se estivessem misteriosamente penetrados por essa cor escarlate
Ettore não vê que mergulhou na brancura do sol
o sol poético das memórias de uma manhã desaparecida
(...)
Marie Borel
Paris - Lisboa, Outubro de 2012
in catálogo "cinematografia - musicalidade 2"

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

STENDALI de Cecilia Mangini - 06.11.2012 - 19h00


Mangini montou e construiu o seu filme como uma experiência da morte, no sentido próprio: uma travessia da morte, ultrapassada pela animação progressiva do canto e da dança.(...) A morte reina, como o testemunha o belo plano tipo Vampyr, visão do cadáver sobre as carpideiras debruçadas sobre ele. (...)  Os gestos e o canto intensificam-se até à libertação do grito, lamento em êxtase sobre o cadáver. (...) Não querendo captar ao vivo um verdadeiro luto, Mangini conseguiu, refazendo o ritual, converter o teatro colectivo do luto num cântico cinematográfico. Enquadramentos, montagem, o cinema torna-se música, lamento fúnebre de um mundo em vias de desaparecer. (...)
Ao canto das mulheres sobrepõe-se a recitação das cinco estrofes do texto composto por Pasolini e recitado por Lilla Brignone. A colaboração neste filme do poeta e futuro cineasta parece evidente. Pasolini sempre se disse ateu mas profundamente religioso, no sentido em que a sua visão do mundo é “épico-religiosa”. Um rosto, um gesto, o canto de um pássaro: a realidade aparece a Pasolini como sagrada. Um filme sobre a sobrevivência de um ritual arcaico no seio de uma sociedade camponesa vinha de encontro às suas primeiras preocupações. (...) Compondo o seu próprio cântico a partir de cânticos gregos de Salento, Pasolini idealiza a sua mãe entre as carpideiras de Martano, chora com ela, como tantas vezes o fez, a morte prematura de Guido. (...)
Três anos depois de ter cantado a dor de uma mãe de Salento, Pasolini trabalha este tema numa longa-metragem, Mamma Roma, o seu segundo filme. Nessa época, reivindica a natureza religiosa do seu cinema, desde que não haja mal-entendidos sobre a natureza dessa religião. Há algo de profundamente ritual na encenação de Pasolini, na sua relação cinematográfica com o mundo, a realidade. As suas duas primeiras longas-metragens, Accattone e Mamma Roma, pelo seu ritmo lancinante, a sua musicalidade repetitiva, têm algo de ritual sagrado. A proximidade com Stendali evidencia a natureza do ritual que é Mamma Roma: um lamento - ritual fúnebre, cântico fúnebre.(...)
Deste modo, o cinema eleva-se à altura do ritual arcaico de Stendali: os sinos anunciam a morte, mas ainda soam. O lamento fúnebre não se contenta em chorar a morte, desafia-a, confronta-a com uma figura - uma forma, um rosto - para que a experimente, isto é, atravessa-a. Todo o lamento é também um cântico de vida.

Cyril Neyrat
Paris, Outubro de 2012
in catálogo "cinematografia - musicalidade 2"

05 de Novembro