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segunda-feira, 3 de novembro de 2008

SALOMÉ de Carmelo Bene - 08.11.2008


(...)  Tudo se mexe, deriva ou freme como o puré de uvas que Herodes aspira com a ponta dos lábios sobre o espelho com o qual observa Salomé; nada é estável, um enjoo geral está suspenso sobre esse mundo que baloiça em que as luzes fraccionam as silhuetas, em que enxames de cores são agrupados por motivos para melhor deslizarem e escamotearem-se na negrura… Isto não é verdadeiramente dança, é mais uma espécie de marulhar, impressionante pulsação de uma sopa cromática que faz flutuar corpos pouco dispostos por si mesmos ao movimento: de preferência espojados, possuídos, encadeados ou petrificados. É o marulhar que os desloca e que agita para eles o poder de uma dança efectivamente invisível, que não se pode efectivar na geleia ruça e tremente da cor - dez mil véus electrizam uma dança inatingível, e contam o império de Salomé.
Cyril Béghin
in catálogo "cinematografia – coreografia 2"
Lisboa, Outubro de 2008

MURIEL de Alain Resnais - 08.11.2008


(...) A bela singularidade de Muriel é a de não ligar o sistema dos raccords aos derivados de uma subjectividade, como o faziam os dois precedentes filmes de Resnais, Hiroshima e O ano passado em Marienbad. Sem imagens-lembrança ou imagens-fantasma, mas com um leque de personagens e de décors co-presentes, que fazem de uns para os outros cortes reveladores de uma latência histórica: um campanário antigo faz raccord com um campanário moderno, sem que se compreenda se o segundo se substitui ao primeiro, ou se a montagem designa a sua coexistência. A destruição espreita: Bolonha já foi destruída durante a guerra, mas, como a casa assente em colunas sobre uma colina da cidade, não cessa de deslizar. É uma enorme voluta branca…
Será isto dizer que a montagem de Muriel infiltra por todo o lado uma espécie de dança metafórica? Gestos contidos, logo cortados, apagados por outros que ocupam o seu lugar, evocados por outros vizinhos ou parecidos que vêm em pontuação transitória, mais à frente: Hélène apresenta-se no mesmo guichet de banco que Simone, a mulher de Alphonse; Marie-Do sai do seu prédio dando uma corridinha comparável à de Hélène, etc. Convém, no entanto, que não andemos tão depressa: se não se dança nunca verdadeiramente nos filmes de Resnais, é porque neles há uma resistência à harmonia, à própria expressividade, ao despojamento dos corpos no espaço. Micro-coreografias de grupo na virtualidade da montagem? Talvez, então, sob o modo negativo e eminentemente moderno da ruptura, da dispersão, da arritmia. (...)
Cyril Béghin
in catálogo "cinematografia – coreografia 2"
Lisboa, Outubro de 2008

sábado, 1 de novembro de 2008

SCHWECHATER de Peter Kubelka - 06.11.2008

(...) Adebar (1957), Schwechater e Arnulf Rainer constituem o que Kubelka chamou, a partir de meados dos anos 70, os seus “filmes métricos”, por oposição aos “filmes metafóricos” que englobam o resto do seu trabalho. Ritmicamente regulados à escala do fotograma, montados segundo constrangimentos matemáticos, os filmes métricos podem também ser lidos “entre as mãos”, ou a olho, como partituras. A redução do número de motivos, até ao simples batimento preto e branco de Arnulf Rainer, a sua repetição e a sua simplificação por efeitos de contraluz (Adebar), de fortes contrastes e de solidarizações (Schwechater) asseguram a legibilidade musical das fitas de fotogramas: o que se inscreve sobre a película terá sobretudo uma função de explosão rítmica. No entanto, e contra a classificação imposta por Kubelka à sua própria obra, bem como contra certos comentadores que afirmam por exemplo que em Schwechater “o objecto importa pouco, é intermutável” , é preciso repetir que “o motivo em Peter Kubelka é não-indiferente”. Não é indiferente que os flashes fotogramáticos de Adebar se encadeiem e se fundam em sacadas das silhuetas dos dançarinos - é toda a ambição desmesuradamente cinematográfica ou “coreográfica” do cineasta que aí se evidencia. Para Kubelka, o puro batimento preto e branco de Arnulf Rainer é também o relâmpago, a alternância do dia e da noite; e a vibração das imagens de Schwechater evocariam o frémito rítmico de um regato: cosmo-coreografia. (...)
Cyril Béghin
in catálogo "cinematografia – coreografia 2"
Lisboa, Outubro de 2008

NECROLOGY de Standish Lawder - 06.11.2008


Uma longa fila de corpos anónimos desfilam lentamente, às arrecuas, de baixo para cima do ecrã, onde são absorvidos pela obscuridade. Como se resvalassem para trás ou fossem descritas por uma interminável panorâmica vertical, as silhuetas deslizam e desaparecem sem nunca regressarem, engolidas por um negro fúnebre. Não se trata de uma cadeia, cada corpo é diferente dos outros, mas da vista parcial de uma sombria escada de Jacob. (...)
Forma minimal da maneira como o cinema agita corpos, pedindo-lhes uma simples comparência na fila indiana dos planos mais ou menos solidários, à escala da película. Necrology retoma isto pelo lado das trevas. É a linha geral fúnebre das imagens em movimento, ou um bizarro limite átono entre a multidão e o desfile, Griffith e Eisenstein, as escadarias de Babilónia e as de Odessa - depois da derrota.

Cyril Béghin
in catálogo "cinematografia – coreografia 2"
Lisboa, Outubro de 2008

sábado, 1 de dezembro de 2007

OS OPRIMIDOS de Miklós Jancsó - 11.12.07


Longos travellings, grupos em movimento, zooms que os aproximam e os afastam, eis o que, na maior parte da obra de Miklós Jancsó, viria a caracterizar a palavra “coreográfico”: amplos desdobramentos de movimentos seguindo figuras e técnicas repetitivas, que foi buscar, ora a uma ora a outra, ou simultaneamente, à disciplina militar, às cerimónias religiosas ou ocultas, às tradições camponesas, ao teatro. (...) Mais do que um estilo, algo que se inscreve claramente no ecrã como na vasta planície da puszta húngara que adoptou como o seu cenário quase exclusivo: linhas, geometrias, traços que nascem num deserto atravessado de história. (...)
A comparação entre as técnicas de organização militar e as técnicas do ballet clássico tornou-se um lugar comum teórico, “já que as danças implicam esse trabalho dos símbolos vivos e a cerimónia dos corpos fiéis, os temas de discursos concordantes sobre o poder sagrado e o amor político (...). É assim que funcionam quer as marchas, quer as danças, todos os comandos dos corpos”. O filme Os Oprimidos traduz plenamente esta comparação fazendo dela o dispositivo dos seus grandes e pequenos ciclos  de circulação das personagens. (...) Parece-nos que a origem do “coreográfico” em Jancsó tem a ver com uma relação dos corpos com o espaço que não passa apenas pela adaptação mas pela geração ou desaparecimento mútuos. Ou antes, uma relação que, a partir das regras, alinhamentos, divisões, cria saltos, buracos, dinâmicas e topografias, relançando uma ideia do “coreográfico” que vai muito para além dos dispositivos militares.  (...)
            Cyril Béghin
            in catálogo "cinematografia – coreografia" 
Lisboa Novembro de 2007