Nos anos 20, em Paris, os artistas e escritores do círculo Surrealista admiravam dois cineastas que trabalhavam no circuito comercial, devido à sua imaginação e à capacidade que tinham de enriquecer e transformar cenas quotidianas com elementos bizarros, desprezando as noções corriqueiras de lógica e razão. Um era Louis Feuillade, cujo nome os surrealistas ignoravam, mas cujos filmes adoravam, em parte porque transformavam Paris numa cidade dupla: a que toda a gente podia ver e uma outra cidade, com uma estranha vida subterrânea, cheia de ameaças, transformações e surpresas. O outro era Tod Browning, a quem chamaram “o Edgar Poe do cinema”, o seu “anjo do bizarro”. Mas se Feuillade tinha algo de ingénuo, assim como Souvestre e Allain, os escritores que forneceram a matéria de tantos dos seus filmes, Tod Browning não devia ter nada de ingénuo e para ele o “bizarro”, a anomalia e a habilidade rara como modo de vida, eram tão naturais como para a maioria das pessoas trabalhar num escritório ou numa loja. É porque Browning bem conhecia o mundo do circo, baseado em anomalias, espectáculos físicos e proezas, mundo em que o fantástico e o bizarro são elementos naturais. O circo também fascinou e até influenciou personalidades bem mais prestigiosas e intelectuais do que Tod Browning, como Brecht e Eisenstein, embora por motivos muito diferentes: a ausência de identificação do espectador com aquilo que vê, contrariamente ao que se passa no “drama burguês”. Não era isso, em absoluto, o que interessava Tod Browning e sim a “esquisitice” como espelho deformado do mundo “normal”, a alteração da norma. (...)
Antonio Rodrigues
in catálogo "cinematografia – coreografia 2"
Lisboa, Outubro de 2008