(...) A intriga faz lembrar a de um episódio de A Quarta Dimensão, The Hitchhiker, no qual um emissário do outro mundo vinha procurar uma mulher que não sabia que estava morta. Não se terá Lynch lembrado da abertura para escrever a de Mulholland Drive? Rapazes e raparigas fazem uma disputa de automóvel. O das raparigas cai de uma ponte e desaparece no rio. Três horas mais tarde, uma jovem coberta de lodo sai das águas. Mary Henry, organista dotada, parte para exercer o seu talento num outro Estado. Na estrada de Salt Lake City, ela repara num imponente edifício abandonado no meio do Grande Lago Salgado, enquanto uma cara embranquecida aparece no vidro da porta do carro. Intimidade de um homem que, visível somente por ela, não cessará de a perseguir na sua nova vida, atracção de um lugar em que Maria acabará por se reunir aos mortos-vivos que o habitam. (...)
Harvey convoca os poderes da coreografia e da disjunção audiovisual para tornar sensível, sem o desvelar, o abismo que doravante separa Mary do mundo dos vivos. Os procedimentos audiovisuais utilizados por Harvey para incarnar essa estranheza produzem o que se poderia chamar um “afastamento coreográfico” entre Mary e o mundo. (...)
Cyril Neyrat
in catálogo "cinematografia – coreografia 2"
Lisboa, Outubro de 2008