(...) Tento, então, que o que quero (sem saber se posso) dizer se não descole absolutamente da força que escapa, com um brilho enigmático, da montagem que faz emergir um secreto sentido (um secreto sorriso) da disposição que liga estes fragmentos de mundo. Porque esta montagem me aparece como o culminar de uma obstinação, uma espécie de cegueira. Como se o querer fazer, o ter-de-fazer (de que falava Ponge) pudesse não saber o que o obstina: e não sabe. Uma ignorância solar é a grande linha de sentido: a que se cola ao olhar cego das cabeças de estátua, aos grandes planos sobre o seu sorriso medusino, ao violento zumbido das abelhas; a que cola os fragmentos recolhidos: o esplendor carnal da festa, do canto masculino (de toada melancólica e insistente, feroz como um zumbido das abelhas), a rapariga de vermelho com seus dentes brancos, de loba; o estranho ter-de-morrer da “bela adormecida” no hospital, o ter-de-matar que incita os toureiros, a profusão de ruínas, a cidade à beira-mar, o silenciosos barqueiro. (...)
Maria Andresen
in catálogo "cinematografia – coreografia 2"
Lisboa, Outubro de 2008