domingo, 2 de novembro de 2014

O CAVALO QUE CHORA de Mark Donskoi - 04.11.2014 - 21h30


Atrás referi (…), Ford e Renoir. Daí vem essa humanidade, e em profundo amor à terra e às pessoas que emana de cada plano de O Cavalo que Chora, essa ternura e o cuidado posto nos mais ínfimos pormenores de cada um dos personagens. Ostap e Salomia são um par apaixonado obrigado a separar-se por imposição do senhor feudal (a acção decorre no século XIX) e enquanto Salomia é “oferecida” a um servo fiel, Ostap desesperado projecta fugir para o outro lado do rio, onde dizem haver mais liberdade e respeito humano.

(…) Entre uma e outra imagem a história desliza como uma verdadeira elegia. E “deslizar” talvez seja o termo mais certo na medida em que o seu ritmo decorre suavemente como as águas do rio que separa a Rússia da Bessarábia, sob o domínio Turco. E a calma singular em que por vezes mergulha este rio e este olhar tão próximo das pessoas e das coisas lembra um outro rio (o sagrado) e um outro olhar (o de Renoir). E a aproximação de Donskoi aos seus ciganos que recolhem Salomia e Ostap ferido, não é ela também tão pura e simples como a de Renoir aos seus saltimbancos da Carroza d’Oro? Mas outros olhares são invocados ao longo deste filme que se assemelha a um grito lancinante de amor. O de Mizoguchi e os seus Amantes Crucificados. Não é somente pelo tema e pela repressão feudal, nem mesmo pela constatação da Impossibilidade da concretização desse amor sujeito a pressões sociais. Neste caso é também o estilo, uma câmara fluente que parece deslizar de forma prodigiosa pelas margens ou sobre um rio, para de súbito descobrir ou uma paisagem ou um rosto: a câmara que acompanha o grito de Ostap ao começo, fi­cando-se sobre os pombos num plano superior (movimento que é repetido para sublinhar a dor e a perda de Ostap), os fabulosos movimentos por entre os juncos, na fuga de Salomia e Ostap, durante o incêndio, culminando no “travelling” em que Salomia conduz os ciganos, aquele “travelling” de cortar a respiração que acompanha o par na margem do rio e que termina no encontro de Ostap com o tio moribundo, ou a panorâmica na feira que começa com o grito de Salomia saindo o seu rosto da câmara até esta enquadrar a representação teatral. Esta é uma das poucas vezes que o estilo se harmoniza com a história (que, de outra forma, é o que se passa sempre com Ford) e em que a história evo­ca outros poetas ucranianos: Dovjenko (em cujos estúdios foi filmado O Cavalo que Cho­ra) e antecipa um dos talentos mais originais do cinema contemporâneo: Paradjanov. (…)
Talvez hajam outras obras a redescobrir nestes anos de degelo na União Soviética. Mas do que conheço, duma forma ou de outra, dá-me a íntima convicção de que O Cavalo que Chora é a obra-prima deste cinema a desta década. (…)

Manuel Cintra Ferreira
in "Folhas da Cinemateca"