sábado, 31 de outubro de 2009

A COMÉDIA DE DEUS de João César Monteiro - 04.11.2009


(...) Se a essência do teatro está na unicidade do acto, na sua absoluta singularidade, não reprodutível, então pode ser chamado teatral um cinema que, no momento da sua realização, quereria encontrar essa intensidade do acto, essa temporalidade do “palco” onde os gestos e as palavras se arriscam no espaço aberto do instante único. A necessidade do plano-sequência deriva dessa mística do acto, do seu ter-lugar sem repetição, que proíbe qualquer corte. A tensão cinema-teatro, é a tensão que, no “palco”, intensifica o encontro, o cara-a-cara entre um acto elevado ao nível do rito, da cerimónia, e uma câmara que o deve registar, fixar, e não terá uma segunda oportunidade. Tensão eminentemente erótica e sagrada, que revela em Monteiro, sob o ridículo permanente dos gestos e das palavras do catolicismo, um desejo místico do êxtase. O que, do teatro, vem então para o cinema, não para o distrair dos seus poderes próprios, mas pelo contrário para os excitar, os realçar, não são tanto maneiras de representar, apriorismos estéticos, artifícios ou truques, mas uma exigência que vem de longe, de uma muito longínqua origem sagrada do rito teatral: uma separação, uma ascese que tende para o sublime do instante.
Cyril Neyrat
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009