segunda-feira, 3 de novembro de 2008

LE NOTTI BIANCHI (As Noites Brancas) de Luchino Visconti - 08.11.2008


(...) Hoje, e à luz das obras posteriores, é possível ir muito mais longe e ver neste filme, não uma obra experimental, como foi dito, mas uma reflexão, muito conseguida e coerente, sobre a articulação entre a ficção e o décor, ou, mais ainda, sobre a dependência daquela em relação a este. Todo o filme se constrói sobre dois décors a que só a personagem de Natalia dá ligação: o da casa desta, com os velhos, os tapetes e Jean Marais; e o das ruas da cidade (predominantemente a ponte) onde impera a figura interpretada por Mastroianni. Simplesmente, enquanto este nunca consegue entrar na outra ficção ou no outro décor (para ele, toda a história de Natalia é ridícula e inconsistente), para Natalia os dois décors confundem-se na mesma continuada e prosseguida ficção e, por isso mesmo, o ponto máximo da sua aproximação com Mario é quando este, a seguir ao flash-back, lhe surge no lugar de hóspede, exactamente na mesma posição e ocupando o mesmo plano. Ela, sim, faz a sobreposição das ficções, ou seja dos décors que para ela são igualmente irreais, neles continuando o mesmo sonho. Por isso, quando Jean Marais regressa, invadindo o décor rua e a “ficção” Mastroianni, para ela tudo é tão absolutamente natural, enquanto, pelo contrário, Mario sente todo o seu “sonho” (no fundo tão incoerente ou tão coerente como o dela) desmoronar-se.
Se esta pista for plausível, compreende-se porque Visconti - que antes e depois deste filme trabalhou sempre em décors naturais - escolheu neste o estúdio e tudo fabricou dentro dele, do modo mais óbvio e, para a época, mais desconcertante: neve artificial, por processos idênticos aos do teatro, neblinas, conseguidas com cortinas, cenários de papelão, cartazes luminosos invertidos, etc. O filme tinha que assentar deliberadamente na ficção mais convencional e mais oposta a qualquer realismo, para que o mundo também teatral e fictício dos protagonistas ganhasse nele todo o seu peso, para que os diversos sonhos prosseguidos por Natalia e Mario revelassem o seu carácter fictício. (...)
João Bénard da Costa
Folhas da Cinemateca
in catálogo "cinematografia – coreografia 2"
Lisboa, Outubro de 2008