(…) Liliom é uma das obras mais abissais e cerradas de Lang, um filme “gelado” sob a aparente roupagem da “féerie”. (…)
A atmosfera vai-se progressivamente rarefazendo entre dois espaços que não se tocam: o espaço lúdico de Liliom e o espaço punitivo da Polícia.
A gravidez da mulher decide Liliom ao “grande assalto” depois de (quando sabe da notícia) correr atrás de um gato preto. A conversa com o cúmplice é filmada à beira da água (enquanto pescam) vendo-se primeiro os reflexos deles na água. Liliom só tem que perguntar as horas ao homem que vão assaltar. Quando o interlocutor puxar do relógio, o amigo o abaterá. Lang, que já tinha dado as horas de espera no comissariado da Polícia, através do grande plano dum relógio, insiste no ensaio de Boyer para o assalto “Pouvez-vous me dire l’heure qu’il est?” e a expressão “l’heure qu’il est” repete-se e repete-se, tornando premonitório esse momento, em que um instante vai decidir de vidas e mortes.
De novo num descampado, em total ruptura com o tom anterior (aproximando-se da primeira noite de amor) Boyer e o amigo esperam a vítima. Lang introduz então uma excepcional personagem: um amola-facas e tesouras, representado pelo grande poeta Antonin Artaud, que precede o assaltado. Cego e irreal pergunta a Liliom se este não tem uma faca que precise de ser afiada. Liliom esconde a faca do assalto e afasta o importuno. Esse episódio é pleno de consequências: repete-se no “céu” e Liliom saberá que se tratava do seu anjo da guarda, sua última chance. Os anjos dos vagabundos são amola-facas e tesouras, pedintes cegos.
A morte de Liliom é um dos momentos supremos do filme. Filmada em “contra-plongé” recortado, em cima dum monte contra um céu baço, Liliom crava em si próprio a faca que negara ao “anjo da guarda”. A intervenção deste teria tido pois como único resultado impedir-lhe a morte e levá-lo à prisão, máximo objecto de horror.
Lang entra no sobrenatural, com os “polícias do céu” a surgirem em sobreposição (Cocteau veio colher aqui modelos para o Orphée) e a confirmarem-lhe o que o cúmplice lhe dissera na noite do crime: “os ricos quando morrem vão para o pé do ‘Bom Deus’. Para nós só há polícia. Música e anjos são para os ricos; para nós só conta a justiça”. Nem na morte se escapa à infernal noção de justiça. Liliom atravessa a tal música e os tais anjos (prodigiosos efeitos que recordam Puvis de Chavannes e as imagens saint-sulpicianas do céu) mas esses acordes não são para ele: desembarca num décor anos 30 e a primeira figura de repetição surge diante dele: o comissariado do céu é igual ao comissariado da terra; o além é igualmente o mundo da proibição.
Daí por diante, como em M, tudo se repete, para perdição de Liliom.
A espantosa ideia do “filme da vida”, em “double-band” (pois capta não só os diálogos como os pensamentos) retira-lhe a sua última defesa. Porque no episódio repetido em filme (o da bofetada - momento máximo da relação Liliom-Julie) a única coisa que conta, para os juízes, é a “segunda banda” ou seja a consciência moral de Liliom, batendo quando o não queria fazer. Se a imagem o salva, o segundo som (o da culpa interiorizada em consciência moral) perde-o. As repetições integrais são ainda mais nocivas que as parciais. (…)
Genialmente fotografado por Rudi Maté (na sua única colaboração com Lang), com Charles Boyer na criação da sua vida, Liliom é a desmontagem implacável do absurdo da repressão e da justiça, leis deste mundo e do outro. Num certo sentido, é o filme mais anárquico de Lang; noutro, o mais claustrofóbico. Tudo se volve em repetição e qualquer “flash-back” é sinal de condenação. Sob uma suavíssima narração, cada plano acrescenta mais um sinal de trevas. O mais terrível talvez seja o da estrela que, quando regressa à terra, Liliom rouba para dar à filha, como “o mais belo dos presentes”. Esta recusa-se a aceitá-la e a estrela cai num esgoto e apaga-se. E, a um canto da imagem, surge, pela terceira e última vez, o anjo da guarda para a apanhar e a pôr no céu.
E Lang ousa sobre as últimas cenas sobrepor a imagem de um demónio grotesco (repetição da figura do cúmplice do crime) que vai pondo nos pratos da balança as boas e as más acções de Liliom. Só que na visão única, tudo está trocado. Liliom perde-se pelos seus impulsos generosos (o próprio assalto tinha como fito dar um futuro brilhante à filha) e só a submissão (ou as lágrimas de outrem) lhe são contadas a favor. No mundo da justiça, só sacrifícios contam. O amor de Liliom e Julie é subjugado pelo arsenal de anjos e demónios terrestres e extra-terrestres. Não é no entanto o seu pior inimigo (o demónio da balança) o camarada que lhe dissera que só a justiça conta, como no céu lhe repetem?(…)
Liliom é a descida aos infernos. A visão global é a mais irredutível das figuras de repetição.
João Bénard da Costa
in "Folhas da Cinemateca"