domingo, 3 de novembro de 2013

ARREBATO de Ivan Zulueta - 09.11.2013 - 19h30


(…) Arrebato é um filme sobre o cinema e a droga, as películas e o caballo correndo a par e passo como se a sua natureza fosse a mesma. E o ponto que o filme quer frisar é que são mesmo: é da cinefilia como droga, do cinema como compulsão e adição, algo que faz viver e algo que faz morrer, que Arrebato fala. No final, o protagonista, um realizador de filmes de terror, oferece-se ao disparo automático da câmara fotográfica como um condenado perante um pelotão de fuzilamento, os “cliques” do disparador soando, e depois fundindo-se, com o som de uma rajada de metralhadora. Não precisamos de saber que Zulueta teve a sua dose de problemas com a heroína para imaginar que o filme tem toques autobiográficos e, mais do que apenas toques autobiográficos, representa obliquamente a vivência colectiva de uma comunidade uber-cinéfila na Madrid de entre o franquismo e o “ressurgimento” corporizado na célebre “movida” (e hoje, os textos dos críticos espanhóis sobre o filme insistem neste ponto, frisando que Arrebato também contém um testemunho do ambiente dessa “movida”). (…)  Há, dizem-nos esses críticos, diversas figuras da “movida” espalhadas ao longo de Arrebato, em papéis secundários e de figuração.(…). E evidentemente, os filmes em que o protagonista trabalha remetem para a também muitíssimo “underground” correnteza do cinema espanhol de terror, de Jess Franco a Paul Naschy.

Arrebato não é forçosamente um filme-puzzle, mesmo que durante muito tempo ele se veja como uma sucessão de enigmas desconexos e a partir de certa altura as peças pareçam começar a encaixar-se com maior clareza, rumo a um final que (…) parece perfeitamente lógico e inteligível, no seu simbolismo como na sua materialidade. Mas, nele, uma percepção do mundo distorcida pelas drogas e uma projecção do mundo como produto do cinema confundem-se quase inseparavelmente, e têm o seu “avatar” na irreal e monstruosa personagem de Pedro P., “homem da câmara de filmar”, homem-mulher e adulto-criança, presença “fantasmática” que é a perfeita consumação de uma criatura “mental”, um enviado do outro lado do espelho cuja missão é arrastar, para esse “outro lado”, tudo e todos. (…)
 
Luís Miguel Oliveira
in "Folhas da Cinemateca"