domingo, 3 de novembro de 2013

CUADEDUC, VAMPIR de Pere Portabella - 09.11.2013 - 22h00


(...) Cuadecuc é uma espécie de filme “à clef”. E a “clef” é nem mais nem menos do que o Generalíssimo Franco: era intenção de Portabella que no Drácula que Christopher Lee interpretava para Jess Franco se visse o “caudillo”. (...)
Contavam as alusões tenebrosas, a imortalidade (Franco estava no poder há trinta e tal anos) mas contava também o lado artificioso, a denúncia da construção da figura (não por acaso, a maquilhagem é um aspecto a que Portabella dá especial atenção). A “clef” ainda funciona, se quisermos ver o filme com ela na mão. Mas a prova da vitalidade de Cuadecuc, e de como o poder do filme ultrapassa as suas circunstâncias, é que também a podemos esquecer. E ver Cuadecuc como uma obra sobre o mito de Drácula – e sobre as suas reiterações cinematográficas, o preto e branco granuloso aludindo evidentemente a filmes tão célebres como o Nosferatu de Murnau ou o Vampyr de Dreyer – e sobre o cinema como artificio, como trabalho, como poesia artesanal e mecânica. A expressão “cuadecuc” (que tem uma sonoridade algo pré-colombiana e fica imediatamente bem colada à palavra “vampir”) é o termo catalão para designar “a cauda de um verme”. Ao mesmo tempo a designa, em jargão, a porção de película que fica forçosamente por impressionar no fim de cada rolo. Se a alusão ao “verme” salienta, em contexto, o fundo político, a alusão à película salienta o fundo auto-referencial. E reforça ainda uma espécie de clandestinidade: como se estivéssemos na “cauda do verme”, no pedaço de película que não pode ser impressionado, que “não existe” ou existe apenas como “zona proibida”. E esta ideia é, obviamente, fundamental no filme de Portabella.
Há uma expressão simplista para descrever a relação de Cuadecuc com o filme de Jess Franco em que se baseia: “making of”. De certa maneira, é-o. Mostra a rodagem e os bastidores, os actores a saírem e a entrarem das personagens, o trabalho que precede a filmagem de um “take”. Mas, no mesmo movimento, refaz, reinventa, arranca do Conde Drácula um outro filme. Mais acima escrevemos que Portabella “vampirizava” o filme de Franco. Talvez devêssemos ter escrito que o “parasitava”. Mais do que “reportar” a sua rodagem, rouba-a. Dos planos e das cenas de Jess Franco extrai (questão de perspectiva, de colocação da câmara, que se imiscui por entre o aparato da rodagem do Conde Drácula) outros planos e outras cenas. A mesma rodagem dá origem a dois filmes: não será caso único na história do cinema, mas é um caso raro.

Luís Miguel Oliveira
in "Folhas da Cinemateca"