domingo, 31 de outubro de 2010

ANATOMY OF A MURDER de Otto Preminger - 06.11.2010 - 21h30


(...) Quem impede a rotina, quem perturba verdadeiramente os hábitos, é Biegler-Stewart, o advogado mais indisciplinado que se possa imaginar, como exclama, irritado, o seu adversário. Capaz de sentar-se ao lado de Duke Ellington e de improvisar um duo com ele, Biegler aborda a sua defesa como se fosse uma partitura de jazz: conhece as regras melhor do que ninguém e por isso mesmo sabe contorná-las, passa constantemente do tom formal ao pessoal, joga com o público, cuja simpatia ou distância sabe pressentir e, sobretudo, conhece o timing, o momento exacto para intervir ou abster-se e até dar a impressão de que está a agir contra a causa que defende.(...)
Entre os actores, há um que se destaca dos demais, sobretudo porque não tem interesses a defender, nem diante da câmara nem por detrás dela. É verdade que quem triunfa no filme é Biegler-Stewart, mas fá-lo diante do olhar divertido e indulgente do juiz Weaver (que substitui o habitual juiz do condado), por vezes quase sob a sua direcção. Isto não se dá por acaso, pois o personagem do juiz deve muito ao seu intérprete. Quem é Joseph N. Welch? Um advogado que não deixou passar a primeira oportunidade de ser juiz que teve na vida, embora para o cinema. (...)
Na Primavera de 1954, uma série de audiências no Senado americano opôs os representantes das Forças Armadas americanas (inclusive o próprio Secretário de Defesa) a Joseph R. McCarthy (...).
O aspecto excepcional do acontecimento fez com que as audiências não apenas fossem públicas, como é a regra, mas fossem transmitidas em directo pela televisão nacional. Os Estados Unidos apaixonaram-se por esta batalha, cuja audiência foi superior à dos grandes acontecimentos desportivos.
Alguns dos golpes mais duros contra McCarthy foram desferidos por um advogado de Boston que aconselhava as Forças Armadas, “in the guise of a simple trial lawyer”: Joseph N. Welch. (...)
Preminger não se limitará a utilizar Welch como actor e a dar a James Stewart o seu ar bonacheirão e as suas astúcias.(...)
Bernard Eisenschitz
in catálogo "cinematografia – teatralidade 2"
Lisboa, Outubro de 2010

POINT OF ORDER de Emile de Antonio - 06.11.2010 - 19h30


Point of Order, primeiro filme de Emile de Antonio, (...)  é ao mesmo tempo um extraordinário documento histórico e um extraordinário momento da arte do filme de montagem. E também é um grande momento de teatro, pois não há nada que mais se pareça a uma representação teatral do que uma audiência num tribunal, a tal ponto que na vertente do cinema que deriva directamente do teatro há um abundante subgénero, o filme de tribunal, que os americanos designam, muito apropriadamente drama de tribunal (courtroom drama, a palavra drama designando aqui uma peça de teatro). As audiências de uma comissão parlamentar que vemos em Point of Order, o chamado caso Exército versus McCarthy, seguem todos os procedimentos de uma audiência em tribunal: réu, defesa, testemunhas, juízes. (...)
Point of Order é sem a menor dúvida um dos grandes courtroom dramas de sempre, de tal maneira os elementos narrativos se acumulam pouco a pouco e a balança passa a pender de um lado para o outro. Diante destes documentos históricos, temos por vezes a impressão de assistirmos a uma ficção brilhantemente elaborada: apresentação inicial dos elementos, crescendo dramático, ponto culminante e o desenlace em que a culpabilidade do réu é provada. Tudo isto se encadeia com uma alternância de tensões e distensões, através das diversas técnicas de desestabilização do adversário que cada um dos personagens tenta: ironia, falsa indignação, manobras de diversão, mentira deslavada. (...)
Antonio Rodrigues
in catálogo "cinematografia – teatralidade 2"
Lisboa, Outubro de 2010


De Antonio conhece as teorias de Eisenstein e as diversas concepções da montagem. Mas também é um cineasta americano, formado pelas comédias que vira na juventude, consciente do poder de subversão de Laurel e Hardy, dos Marx Brothers ou de W. C. Fields, cujo It's a Gift considerava como uma das melhores análises do capitalismo americano. Contrariamente aos seus amigos do New American Cinema (o underground nova-iorquino), ele conhecia a força da dramaturgia e das personagens no cinema. Em Point of Order, McCarthy lembra às vezes Fields ou um outro actor irlandês, Pat O'Brien (que se pôs a chorar, sozinho, num bar, na noite em que o senador morreu). Welch já tem a magnífica presença que terá no filme de Preminger. [Anatomy of o Murder]. Com a cabeça apoiada na mão fechada, à altura do queixo ou sobre o rosto, com os óculos na ponta dos dedos, ele é a imagem de alguém que ouve de modo algo distraído, mas não deixa passar nenhuma oportunidade de marcar pontos contra McCarthy.
Bernard Eisenschitz
in catálogo "cinematografia – teatralidade 2"
Lisboa, Outubro de 2010

L'AFFAIRE DREYFUS de Georges Méliès - 06.11.2010 - 19h30


(...) Como se sabe, o caso Dreyfus dividiu a França em dois campos opostos e furiosamente irreconciliáveis, os que diziam que Dreyfus tinha sido vítima de uma conspiração e os que insistiam em dizer que era culpado. Quando o filme foi lançado, as paixões desencadeadas pelo caso estavam no auge e houve violentas refregas nos cinemas, fazendo com que L'Affaire Dreyfus fosse retirado de cartaz, no que talvez tenha sido o primeiro caso de censura na história do cinema. Dreyfusard convicto, Mélies faz o papel de Fernand Labori, o advogado de Émile Zola (que tomara a defesa do capitão num artigo célebre e violento, intitulado “Acuso” "J'accuse") e de Dreyfus, no segundo processo, em Rennes.
O filme reconstitui todas as etapas do caso e é dividido em treze capítulos que são verdadeiros actos de uma peça.(...)
Antonio Rodrigues
in catálogo "cinematografia – teatralidade 2"
Lisboa, Outubro de 2010

4 e 5 de Novembro

sábado, 30 de outubro de 2010

SERGEANT RUTLEDGE de John Ford - 05.11.2010 - 21h30

 
(...) Aos olhos do mundo branco, Rutledge só pode ser culpado. Aos olhos de Ford, como aos de Cantrell, só pode ser inocente, apenas com a diferença, e não é de somenos, de que, para Ford, ele só é inocente por ser considerado culpado. Sabe, portanto, que, em certa medida, a este processo-simulacro só poderá opor um processo-engodo, trompe-l'oeil contra trompe-l'oeil.
Ford reduz deliberadamente o espaço tradicional evacuando a sala, recorre descaradamente a todo o arsenal maneirista, contrata pela segunda vez a artista menos fordiana (Constance Towers), brinca com os testemunhos, não liga minimamente ao verdadeiro culpado (que podia chamar-se MacGuffin) a não ser para fazer dele uma imitação de Hans Beckert-Peter Lorre, ridiculariza o processo (Cantrell é, simultaneamente, o advogado de defesa e um dos actores e testemunhas do drama), pulveriza as analogias dramatúrgicas que fizeram as glórias dos processos hollywoodescos e transforma o tribunal numa cena de ópera militar.  (...)
Pierre Léon
in catálogo "cinematografia – teatralidade 2"
Lisboa, Outubro de 2010


(...) Já em Young Mr. Lincoln (A Grande Esperança), Ford punha em cena o processo dos irmãos Clay como uma peça de teatro. Em Sergeant Rutledge, o processo já não é metafórico, mas literal. Ford acentua a teatralidade recorrendo a ângulos e a escalas de plano que dividem nitidamente o espaço entre a cena onde se desenrola a representação e o público que assiste a ela. Há uma série de planos enquadrados do ponto de vista do público, presente ou ausente, como que apoiados na balaustrada que divide a sala em profundidade como no varandim de uma sala de teatro. Um desses planos passa da horizontal para um picado, como se a cena estivesse a ser vista do primeiro balcão. Quando o jovem advogado, que chega com um dia de atraso, vê o grupo de mulheres que espera à frente do tribunal, diz recear que elas encarem o processo que se vai desenrolar como jogos do "circo romano".(...)
Cyril Neyrat
in catálogo "cinematografia – teatralidade 2"
Lisboa, Outubro de 2010
sessão com a presença de Cyril Neyrat e Pierre Léon

THE RETURN OF FRANK JAMES de Fritz Lang - 05.11.2010 - 19h00

(...) Uma vez mais, para dividir a encenação especular (a de Frank) e a encenação fictícia (a dos Ford) Lang recorre à encenação espectacular. Neste caso não é o “filme dentro do filme”, mas a “peça dentro do filme”. Um dos momentos de antologia desta obra é a irrupção de Fonda pelo teatro onde Carradine e Tannen representam (ou seja, falseiam) a morte de Jesse, atribuindo-se o lugar dos heróis que não eram. O contracampo do palco com o camarote de Fonda (e com o olhar de Fonda) varre-os de cena, como depois se repetirá na morte de Charlie Ford e na fuga do tribunal de Bob Ford. Fonda é o espectador que sabe de mais e que, por isso, sobrepõe à mise-en-scène desarticulada, à má representação (a do teatro) a mise-en-scène articulada e a presença não representável. (...)
João Bénard da Costa
Folhas da Cinemateca
in catálogo "cinematografia – teatralidade 2"
Lisboa, Outubro de 2010

(...) Será que Frank James era um verdadeiro actor? No início do filme, quando fica a saber que os irmãos Ford não vão ser condenados pelo assassinato de Jesse, e que, além disso, vão ficar com parte da recompensa, Frank decide voltar a pegar em armas, mas fá-lo como o faria um actor já reformado que quisesse voltar ao palco. (...)
Mas é na cena final, a do julgamento, que a dimensão teatral do filme atinge o auge. Os verdadeiros julgamentos de Frank James desenrolaram-se, aliás, mais ou menos da mesma maneira. Houve muitos, no espaço de três anos, e todos eles tiveram um final feliz para Frank, com um júri sulista conquistado desde o início e, aparentemente, um humor geral bonacheirão, assemelhando-se mais a uma paródia de julgamento. No filme de Lang, é o Major Rufus Cobb (Henry Hull, muito cabotino e super maquilhado), o editor janota do jornal local, que está encarregado da defesa, não sem alguma apreensão: “I may be a mite rusty” confessa ele a Frank. Haverá um erro de casting? Ficamos imediatamente impressionados com o tom muito fordiano da cena do julgamento, e mais uma vez nos lembramos de A Grande Esperança (Young Mister Lincoln). (...)
Stéfani de Loppinot
in catálogo "cinematografia – teatralidade 2"
Lisboa, Outubro de 2010
sessão com a presença de Bernard Eisenschitz

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

BIETTE de Pierre Léon - 04.11.2010 - 21h30 - 1ª exibição pública


Foi a Christine Laurent, como ela conta no filme do Pierre Léon, que trouxe à Cornucópia o Biette. Ela saberá porquê. Mas julgo que acertou. E quando ela me mandou o Pierre Léon que me pedia para ler em francês o monólogo que o Biette acrescentara em Lisboa ao seu projecto de filme e nosso Barba-Azul, e que eu próprio traduzira, senti a responsabilidade de um momento grave, como o Pierre Léon, aliás, mostra no filme. Eu estava a renovar uma espécie de baptismo. E era como se a este seu amigo, o tivesse conhecido sempre. E ao ver o seu filme sobre o Biette ficou mais que claro que através do Barba-Azul e sem ter de pensar muito nisso (tudo no convívio com o Biette, segundo me lembro, era também assim, como se nada fosse) tinha passado a fazer parte de uma espécie de irmandade. Pobre. É disso, a meu ver, que nos fala o filme onde vão desfilando pessoas tão diferentes mas com alguém em comum que dá nome ao filme e de certo modo as transforma e quase não aparece. E lá longe, como também se percebe no filme, um santo que juraria que nos será comum: Pasolini. Seremos todos Franciscanos? Não é isso. Mas todos teremos amado o fradinho de Rossellini. (...)
Luis Miguel Cintra
in catálogo "cinematografia – teatralidade 2"
Lisboa, Outubro de 2010



(...) Tratando-se de um retrato, o caso é atípico na obra de Pierre Léon, de que conhecemos as adaptações de Dostoievski ou Tchekhov, as “féeries civiles” (termo roubado), as viagens à Rússia de personagens em improviso. O que se mantém, aqui em ligação directa com o fulcro do filme, é esse espírito de trupe, uma produção entre amigos e colaboradores recorrentes construída à volta de um núcleo de amigos. Em Biette, são chamados a intervir nesse exacto papel e Pierre Léon, fora e dentro de campo, é um deles, lugar que assume, de partida. O arranque do filme tem lugar numa sala de teatro em atmosfera de ensaios, onde no fim voltamos, para assistir à interpretação da cena da floresta de Barbe-Bleue, de Biette, por Françoise Lebrun (actriz de um primeiro Biette, Pornoscopie, no fim deste filme Barbe-Bleue), Pascal Cervo (actor do último filme de Biette, Saltimbank, aí chegados o mensageiro) e Léon (que no fim do seu filme toma a pele de Mathieu), três personagens alumiadas por uma candeia à procura de um autor no escuro de uma sala, entre as cadeiras de uma plateia nesse momento tornada palco. (...)
Maria João Madeira
in catálogo "cinematografia – teatralidade 2"
Lisboa, Outubro de 2010

sessão com a presença de Pierre Léon, Christine Laurent, Maria João Madeira, Marcos Uzal

ONCLE VANIA de Pierre Léon - 04.11.2010 - 19h30 - Ante-estreia

(...) A melancolia [...] é difusa, é daquelas que nos assalta depois de um almoço de Verão, quando se resiste à sesta para conversar devagarinho com os familiares ou sentar-se preguiçosamente debaixo de uma árvore, porque o álcool e o cansaço da digestão deixaram os olhos demasiado sensíveis. Então, a preguiça de um instante deixa-se atravessar pela nostalgia de aventuras mortas, enquanto um vago tédio torna o futuro insuperável - uma suave indolência sugere-nos que tudo acabou. O Tio Vânia é aquele que não quer deixar-se levar por este estado que, lucidamente, constata para o rejeitar: recusa a beatitude de Gaufrette (Vladimir Léon) e, quando Elena Andreïevna (Bénédicte Dussère) declara que está um tempo maravilhoso, ele responde alegremente que “está um tempo para a gente se enforcar”. Ora, talvez seja precisamente por estar maravilhoso que é de “se enforcar”: tal como, por vezes, um bem-estar passageiro nos lembra que a felicidade é impossível, aquilo que surge como maravilhoso pode levar-nos a pensar naquilo que já não o é. Pierre Léon torna estes sentimentos palpáveis através da luz, mas, também, através da presença dos actores que parecem ter sido enredados no estado das suas personagens, como que envolvidos num doce cansaço.(...)
Marcos Uzal
in catálogo "cinematografia – teatralidade 2"
Lisboa, Outubro de 2010

sessão com a presença de Pierre Léon, Diogo Dória, Marcos Uzal

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

2 e 3 de Novembro

LES INTRIGUES DE SYLVIA COUSKI de Adolfo Arrieta - 03.11.2010 - 22h00


(...) Estávamos em 1974, o mesmo ano de La Maman et la Putain, mais um filme-testemunho da época. Mas, enquanto Jean Eustache “reconstitui” implacavelmente a atmosfera do tempo - as relações amorosas, a ressaca do pós 68, o quartier latin, a moda, as palavras, os factos e os gestos - realizando, por certo involuntariamente, por intermédio da ficção aquilo que para nós se tornou também um documentário, Adolfo Arrieta deixa a ficção avançar nas entrelinhas, ao ponto de parecer que esta existe antes da chegada e da concretização cinematográfica, para além do que é filmado. Como um fotógrafo que no escuro do seu laboratório via aparecer algo nos negativos, uma figura, uma situação que não tinha visto no momento em que tirou a fotografia. Igualmente, enquanto Jean Eustache radiografa e disseca transformando os seus escalpelados em heróis universais, em Adolfo Arrieta não há a mínima cirurgia, a mínima identificação: clara manifestação de uma época, as suas criaturas são, mais do que universais, fundamentalmente intemporais, fora do tempo e fora da sociedade. Para além da ficção e para além do documentário.(...)
E há Marie France. Meio fada, meio duende, a cantora que preenchia então as belas noites do Paradis Latin é Cármen, a escultura viva. Uma libélula espetada por um naturalista, exposta a todos os olhares, tanto por Arrietta como pelo artista Vernon. E embora nem um nem outro tenham a crueldade de Peter Ustinov, ela é uma irmãzinha de Lola Montes, trágica e comovente.(...)
Renaud Legrand
in catálogo "cinematografia – teatralidade 2"
Lisboa, Outubro de 2010
sessão com a presença de Renaud Legrand e Marcos Uzal

THE BLACKBIRD de Tod Browning - 03.11.2010 - 19h30


(...) Estamos aparentemente - mas apenas aparentemente - num mundo organizado sob o signo de uma visão maniqueísta. Uma visão que, de certo modo, ilustra a divisão perfeita entre Jeckyll e Hyde, dicotomia exemplar que serve sistematicamente de modelo à estruturação das ficções de Browning. Por outro lado, o cineasta utiliza o seu actor favorito, Lon Chaney (curiosamente filho de pais surdos-mudos), para encarnar um papel marcado não só pela duplicidade como pela duplicação. (...) Na verdade, em The Blackbird, ninguém é o que aparenta. 
Saguenail
in catálogo "cinematografia – teatralidade 2"
Lisboa, Outubro de 2010
sessão com a presença de Regina Guimarães e Saguenail

FREGOLI TRANSFORMISTA de Leopoldo Fregoli - 03.11.2010 - 19h30

Leopoldo Fregoli, ventríloquo e músico, conquistou uma reputação mundial como transformista, podendo interpretar em cena uma centena de diferentes papéis no mesmo espectáculo, mudando de personagem e de fato a uma velocidade alucinante.
Em 1897, em Lyon, durante um espectáculo no Théatre des Célestins, encontrou os irmãos Lumière que vieram assistir à representação. Louis Lumière convidou-o a visitar o seu laboratório. Fregoli, muito interessado por esta descoberta, procurou desde cedo integrar o cinema no seu espectáculo, convencendo os irmãos Lumière a vender-lhe um aparelho.
Fregoli modificará ligeiramente o aparelho que chamará de Frégoligraph e com o qual filmará em Itália numerosas curtas-metragens, de 1897 a 1903.
Alguns destes filmes mostram o seu espantoso processo de transformação, em plano único, como se assistíssemos ao seu espectáculo no palco.

GREZY (SONHO) de Yevgueni Bauer - 02.11.2010 - 21h30 - sessão de abertura


(...) Será pouco dizer que a história de Grezy (Sonho) suscita uma certa estranheza inquietante quando hoje em dia o vemos. Sergei Nikolaevich, viúvo inconsolável, pensa ter visto a mulher tão amada, viva, ao virar de uma esquina. “Elena!” Sim, é mesmo ela, ou melhor, a sua reencarnação, uma outra que se parece muito com ela, uma outra um tudo ou nada vulgar - mais tarde percebemos que é uma actriz - mas quem sabe se, uma vez com as vestes da defunta, essa semelhança não seria perfeita? Deixamo-nos facilmente levar pelas recordações que nos assolam durante estes planos, um corpo resgatado na Baía de San Francisco, um velho cemitério, uma ruiva um pouco ordinária, um vestido verde, cabelos soltos... Como se Grezy, contrariando o tempo, reencenasse o guião de Vertigo (A Mulher que Viveu Duas Vezes). Tal não é possível no nosso pequeno mundo racional (como também não é possível essa morta voltar à vida), mas a vertigem que se sente nessas imagens fez o seu caminho, obcecando-nos para sempre. (...)

Stéfani de Loppinot
in catálogo "cinematografia – teatralidade 2"
Lisboa, Outubro de 2010 

(...) Que coisa transforma um romancezito (...) (Bruges-la-morte, de Georges Rodenbach) numa obra-prima do cinema? Yevgeni Bauer, o maior realizador de cinema da era czarista e um dos maiores cineastas de sempre soube-o antes de muitos outros e com uma consciência lucidíssima: a encenação. Em Grezy, Bauer conta a sinistra história de um viúvo que julga reconhecer numa actriz a cópia exacta da sua mulher, acabando por assassiná-la num delírio fetichista: a encenação é toda ela um jogo entre diversos níveis de realidade misturados entre si - a visão, o pesadelo, o real - que dão vida a uma obra moderna e complexa (e estamos apenas em 1915!). Todo o filme poderia ser lido como uma visão onírica obsessiva: a estrutura é quase circular - abre e fecha com a morte daquela que parece ser a mesma mulher - e todo o filme se assemelha a um registo minucioso das alterações de uma mente cada vez mais ensombrada pela dor e pelo luto. Bauer mantém a câmara afastada das personagens - aqui não existem os seus extraordinários e inovadores primeiros planos - e cria uma série de tableaux vivants, que sublinhando mais ainda uma recitação dos actores já de si pesada e teatral, parecem tornar visível o estado de espírito cada vez mais angustiado do protagonista.(...)
Federico Rossin
in catálogo "cinematografia – teatralidade 2"
Lisboa, Outubro de 2010 


UMA HISTÓRIA IMORTAL de Orson Welles - 02.11.2010 - 21h30 - sessão de abertura


(...) Era uma vez, em Macau, um rico comerciante, o Sr. Clay... um dia lembra-se da história de um marinheiro ... a de um velho negociante, sem herdeiros, que pede a um marinheiro que passe a noite com a mulher dele ... e Clay manda o seu guarda-livros encontrar duas pessoas que representem esta história... (...) A encenação pode começar. Todos sabem os seus papéis. Melhor até do que aquilo que Clay consegue imaginar. Pode mesmo dizer-se que, nesta matéria, até sabem mais do que ele. E é realmente um pequeno teatro que Welles dirige na pele de Clay. O marinheiro é recebido diante de uma bandeira vermelha. Nada a censurar. Estamos em terreno conhecido. A única coisa é que nenhum realismo preside à sequência. A cortina pode abrir-se sobre o drama. (...)
Jean Breschand
in catálogo "cinematografia – teatralidade 2"
Lisboa, Outubro de 2010

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

CINEMATOGRAFIA - TEATRALIDADE 2


Em 2009 demos início a uma nova etapa deste ciclo, que prossegue em 2010, com uma nova porta de entrada - questionar as relações entre o cinema e o teatro. Esta programação procura, desde a sua primeira edição, levar o espectador a abordar os filmes - mesmo aqueles que já conhece - com um novo olhar e a redescobri-los graças à simples alteração do ponto de vista, desta vez através da teatralidade.
Alguns fios condutores guiaram a escolha dos filmes. Um deles é o tema da representação (a passagem do real ao imaginário ou, melhor dito, da mise en scène do real, a sua teatralização), como é o caso de Uma História Imortal de Orson Welles, ou Sonho (Grezy) de Yevgueni Bauer ou ainda Céline et Julie vont en bateau de Jacques Rivette. Um segundo fio condutor aborda aqui um conjunto de quatro filmes, filmes sobre o processo no cinema americano onde a sala do tribunal é encarada como uma verdadeira cena de teatro (The Return of Frank James, de Fritz Lang, Sergeant Rutledge, de John Ford, Anatomy of a Murder, de Otto Preminger e Point of Order, de Emile De Antonio). Outros ainda abordam o tema da metamorfose, o espaço enquanto cena, a frontalidade, as relações entre espaços fechados-espaços abertos, etc.
A separação entre os diferentes temas está longe de ser estanque e cada um dos temas evocados encontra ressonâncias em todos os outros.
Teremos a presença de Acácio de Almeida, Bernard Eisenschitz, Christine Laurent, Luís Miguel Cintra, Cyril Neyrat, Diogo Doria, José Manuel Costa, Luís Miguel Oliveira, Margarida Gil, Maria João Madeira, Marcos Uzal, Pierre Léon, Regina Guimarães, Renaud Legrand, Antonio Rodrigues, Saguenail, Alberto Seixas Santos, Augusto M.Seabra para participar nas conversas (informais) sobre estes filmes.
Esta programação foi concebida e coordenada por Pierre-Marie Goulet, Teresa Garcia e Ricardo Matos Cabo em conjunto com a Cinemateca Portuguesa e com a colaboração de Bernard Eisenschitz, Cyril Neyrat e Stéfani de Loppinot.
Um catálogo que inclui textos inéditos dos participantes considerando esta perspectiva da teatralidade acompanha (e prolonga) este ciclo.

Edição 2010: cinematografia - teatralidade 2

terça-feira, 26 de outubro de 2010

CINEMATOGRAFIA - TEATRALIDADE 2: CATÁLOGO


O catálogo "cinematografia-teatralidade 2",  edição 2010 de "o cinema à volta de cinco artes - cinco artes à volta do cinema" estará disponível a partir do dia 2 de Novembro,  dia da abertura deste ciclo, na Cinemateca Portuguesa. Este livro de 156 paginas contém textos originais de Jean Breschand, Stéfani de Loppinot, Federico Rossin, Emmanuel Siety, Saguenail, Renaud Legrand, Pierre Léon, Cyril Neyrat, Antonio Rodrigues, Bernard Eisenschitz, Philippe Lafosse, Maria João Madeira, Marcos Uzal, Diogo Dória, Luís Miguel Cintra, Philippe Fauvel, Ricardo Matos Cabo, Alok B. Nandi e ainda textos de Jean-André Fieschi, Manuel Cintra Ferreira, João Bénard da Costa, Giorgio Passerone, Jean-Claude Biette e Christine Laurent.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

EDIÇÃO 2010: CINEMATOGRAFIA - TEATRALIDADE 2

cinematografia-teatralidade 2
edição 2010 de 
o cinema à volta de cinco artes
cinco artes à volta do cinema 
terá lugar de 
2 a 11 de Novembro de 2010 
 na Cinemateca Portuguesa

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

OPENING NIGHT (Noite de Estreia) de John Cassavetes - 11.11.2009


(...) Como Stromboli ou como Vivre Sa Vie, Opening Night é a subversão das regras do “star vehicle”: num aparente mimetismo das suas convenções, trata-se sempre de pôr uma actriz (não por acaso mulher do realizador) debaixo de todos os holofotes. Depois é que as coisas mudam e em vez de se procurar firmar uma identificação e um reconhecimento seguros se faz precisamente o contrário. Põem-se em causa, desafiam-se essas identificações e esses reconhecimentos, até que seja a própria imagem da actriz a vacilar e a resistir a qualquer fixação.
No filme, é dessa vacilação que tem medo a personagem de Gena Rowlands. Opening Night, mais do que um filme de actores como quase todos os filmes de Cassavetes, é um filme sobre actores. E Gena Rowlands veste a pele de uma actriz, cujo papel na peça teatral em que presentemente trabalha vai lançar numa profunda crise pessoal - entre outras coisas, porque sente que a sua imagem está em jogo e porque tem tanto medo de a sentir vacilar como de a ver definitivamente fixada (acredita que, depois da peça, fique condenada a representar sempre o mesmo tipo de papéis), ou porque, noutros termos, tem medo de envelhecer e de descobrir que já não é a mesma. Opening Night é a história da sua tentativa de fuga, uma fuga de si própria que só a leva cada vez mais para dentro de si própria - de tal modo que, literalmente, os seus fantasmas se materializam (corporizados na jovem morta por atropelamento no princípio do filme).(...)
Luís Miguel Oliveira
Folhas da Cinemateca
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

TO BE OR NOT TO BE de Ernst Lubitsch - 11.11.2009


(...) Sucede que quanto mais vejo o filme e penso nele, mais se me impõe que esse título não foi escolhido ao acaso nem por acaso foi esse o monólogo escolhido.
O que vou dizer é muito discutível, e por isso avanço com cautelas e por partes.
1) To Be or Not To Be, filme inteiramente calculado sobre efeitos de representação, sobre a representação de uma representação, sobre o teatro no teatro, sobre o cinema no cinema, sobre o espectáculo no espectáculo, parece-me funcionar de modo equivalente à “peça dentro da peça” do Hamlet. Se bem se lembram, a peça que Hamlet encomendava aos actores em visita a Elsinor, destinava-se a representar o crime que lhe matara o pai para tentar desmascarar os criminosos. Hoje, diríamos que era um psicodrama para confirmar a Hamlet que o fantasma tinha falado verdade.
De certo modo, pode dizer-se que a finalidade de Lubitsch é a mesma: através de mirabolantes peripécias, encenar o nazismo, por forma a que este fosse simultaneamente exorcizado e libertado na sua essência maléfica. A “mise-en scène” funciona como a ampliação do embuste, de todos os embustes (dos amorosos aos teatrais e aos políticos). To Be or Not To Be (inscrito, desde o título, sob o signo do teatro) é a encenação genial do duelo entre duas encenações igualmente risíveis: a do encenador Dobosch e a do encenador Hitler. Por isso, as personagens podem trocar de peça (e de papéis) com tanto à vontade e com idênticos lapsos. (...)
João Bénard da Costa
Folhas da Cinemateca
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

LARMAR OCH GOR SIG TILL (Na Presença de um Palhaço) de Ingmar Bergman - 10.11.2009

 
(...) Ao primitivo personagem [de Carl], Bergman acrescenta outras características. A paixão por Schubert, a sífilis (que dominam, de forma brilhante, o primeiro diálogo entre Carl e o médico), e um “invento” especial : a cinematografia sonora, que consistia em actores debitarem os diálogos do filmes atrás de uma cortina (que, sabe-se, era uma prática frequente nas exibições de filmes mudos). Carl teria realizado um filme para assim ser projectado, tendo por tema a vida e morte de Schubert, e que o deixou arruinado.
[Na segunda parte de Larmar och Gor Sig Till (...) o filme transforma-se (...) numa belíssima homenagem aos “fabricantes de imagens” (que é o título do novo trabalho, e outra admirável homenagem ao cinema mudo, que é Bildmakarna que Bergman fez em 2000). A própria exibição do referido filme parece, desde logo, uma homenagem (inconsciente?) ao velho cinema, pois os planos da porta exterior que se abre fazendo entrar uma revoada de neve artificial, na sua repetição lembra planos idênticos e anedóticos de The Fatal Glass of Beer com W.C. Fields. Bergman, porém, trabalha noutro registo. A homenagem, aqui, tem a ver com a relação que esse tipo de apresentação do filme tem (tinha) com o teatro. E, para o sublinhar, faz “desaparecer” o filme ainda no primeiro acto com a intervenção “providencial” de um incêndio. Para não defraudarem os amigos espectadores, Carl e os seus cúmplices transformam a exibição numa “representação”. (...)
Manuel Cintra Ferreira
Folhas da Cinemateca
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

THE PHILADELPHIA STORY (Casamento Escandaloso) de George Cukor - 10.11.2009


(...) se basta um nada para que o drama se evapore em comédia, também basta um nada para que a comédia se deteriore em drama. Fragilidade, maleabilidade do instante vivido que fazem do mundo do espectáculo, para Cukor, um mundo privilegiado: é nesse mundo que se vive mais intensamente, porque nele se passa mais facilmente de um estado a outro.
O que explica que, do mesmo modo que ontem a de Lubitsch, ou que hoje, para uma grande parte, a de Godard, a obra de Cukor seja uma resposta - ou uma pergunta paralela - à célebre pergunta da Camilla, de Renoir.
As interpenetrações do teatro e da vida, da representação e da verdade, do drama e da comédia tecem aqui redes subtis, armadilhas e abrigos onde as aparências, a pouco e pouco, se deixam apanhar ou se refugiam. Ainda aqui se trata de nos entendermos sobre o teatro, a propósito do qual o fascínio experimentado por Cukor não limita a sua existência à sua presença visível, como em A Star is Born, Les Girls, Heller in Pink Tights, Let's Make Love … Porque ele vive também de uma vida mais secreta, em segundo grau, em filmes em que um olhar superficial não conseguiria descortiná-lo: nas comédias com Judy Holliday, ou neste Philadelphia Story. (...)
Jean-André Fieschi
Cahiers du Cinéma, nº140, 1963
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

HELLER IN PINK TIGHTS (Agarrem essa Loira) de George Cukor - 10.11.2009


(...) Em Heller in Pink Tights, Cukor vai fazer surgir esse delicioso sentimento de perturbação e de maravilhoso ligado às práticas da ilusão, jogando sem cessar com a montagem e com os espaços. O teatro de Pierce, que acolhe a trupe de Healy em Cheyenne, é um magnífico exemplo disso: é impossível identificar a maneira como se interligam as suas diferentes partes sem visionar várias vezes as cenas em questão (como se faria para descobrir um truque de magia). Tudo é feito de cortes, ocultações, caixas cénicas ligadas umas às outras, que exigem, para compreender a sua lógica, um olhar atento e não contemplativo, o que é uma façanha perante o magnetismo animal de Sofia Loren, que parece sempre aparecer sem nunca desaparecer, imagem fixa (como se fala de ideia fixa) que capta todos os olhares. (...)
Stéfani de Loppinot
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

THE LIFE OF JUANITA CASTRO de Andy Warhol -09.11.2009


(...) É impossível, no desconhecimento da versão propriamente teatral da peça de Tavel, discernir a que ponto  The Life of Juanita Castro é a peça ou uma sua substituição por uma espécie de denúncia da ordem teatral - mormente pela presença do próprio Tavel, debitando o texto que as suas actrizes devem dizer e que elas depois repetem (mesmo com algumas dificuldades nas frases em castelhano), com um mínimo de afectação mas não totalmente isentas de um esforço de “impersonation”. (...)
Por outro lado, toda a “representação” é feita em função de uma câmara (ou de uma suposta câmara) situada em frente às actrizes, que estariam portanto numa posição de absoluta frontalidade. Só que essa câmara, real ou imaginária, não é a câmara de Warhol nem corresponde ao ponto de vista do enquadramento - o que gera um efeito estranhíssimo sempre que Tavel pede às actrizes (...) que olhem “para a câmara”. Ficamos sempre de lado, há, chamemos-lhe, um ponto de vista lateral sobre a frontalidade, e    é como se fosse a própria “denúncia da representação” a ser “denunciada”, como se afinal de contas ela fosse ainda apenas uma parte da “representação”. No fundo, tudo tende para aí, e nem referimos o mais óbvio e mais saliente, a absoluta dissociação entre as “personagens” e os corpos que supostamente as representam. (...)
Luís Miguel Oliveira
Folhas da Cinemateca
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

TOÂ de Sacha Guitry - 09.11.2009


(...) Guitry recordando-se de Sarah Bernhardt (também citada em Toâ): “Vi Sarah Bernhardt, uma noite, falando comigo nos bastidores, com a mão sobre o puxador da porta de um cenário, e acabando a frase enquanto atravessava o umbral dessa porta. Vi-a portanto passar da cidade ao palco, da mulher que ela era à personagem que ia ser - sendo ainda uma e, no entanto, já a outra. Isso não durou mais que um segundo - mas durante esse segundo, ela foi duas mulheres - e como desempenhava o papel de uma personagem cruel, ela teve para comigo, no fim de contas, um gesto afectuoso que era desmentido por um olhar feroz - dando-me assim o testemunho prodigioso de um mimetismo instantâneo” . E o próprio Guitry em Toâ, capaz de passar enquanto o diabo esfrega um olho do “eu” à “representação”,  quando, tendo perguntado a Marconi se podia enfim começar a desempenhar o papel para o qual estava no palco, subitamente, como um sprinter reagindo ao tiro de partida, encadeou o seu texto a uma tal velocidade - e do mesmo modo o corpo, quer dizer, sem a ajuda de um puxador de porta - ao mesmo tempo imóvel e já longe, que aqui se renuncia a descrever o efeito produzido sobre o espectador por uma tamanha “transformação à vista”. (...)
Bernard Bénoliel
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

terça-feira, 3 de novembro de 2009

UKIGUSA (Ervas Flutuantes) de Yasujiro Ozu - 07.11.2009


(...) Ao abrir o filme  reparamos na parecença que há entre uma garrafa e um farol e, daí para a frente,  notamos que, se não nos chamarem a atenção, reparamos em muito pouco. E que se calhar nunca demos a devida atenção ao vermelho da caixa do correio, do gelado, dos estandartes, das flores, e do interior de um guarda chuva, nem ao verde, ao cinzento, ao castanho das montanhas, das casas, dos kimonos, e de outras cores como o azul do mar e a cor da chuva. E como todas elas estão dentro e fora de nós.
E ficamos também a reparar da importância da forma do fumar, do abanar do leque, e de outras formas de fazer, que nos contam histórias, que as palavras não conseguem, mas nos fazem viajar no vento por cima do mar.
Desse mar, a que pertence o farol e donde virá o teatro.
Quando o teatro chega, tudo se transforma, a alegria transvasa, e quando ele parte, nada fica como dantes. O teatro é assim, agitador, há sempre qualquer coisa que sucede, que deixa as vidas diferentes. (...)
Bibi Perestrelo
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

ZANGIKU MONOGATARI (Os Contos dos Crisântemos Tardios ) de Kenji Mizoguchi - 07.11.2009


(...) Recorramos a Gérard Legrand (Lumière, rituel, l'amour in Positif nº251, Fev. 1982) para notar a predominância dos décors horizontais que repetem a estrutura cenográfica do kabuki, por vezes atingindo a abstracção, de que são exemplo os planos em que durante uma das três representações teatrais do filme umas personagens olham para a câmara através de uma espécie de cortina em ripas que se interpõe entre elas e o ecrã como um véu que o atravessa em comprimento produzindo um efeito de scope. A predominância desta horizontalidade, favorecida pela estrutura da casa tradicional japonesa, permite a organização do espaço no interior do plano, particularmente evidente na sequência em que Kiku procura Otoku nos compartimentos do comboio, assumindo a câmara uma posição paralela à do personagem cujo movimento, descrevendo direcções contrárias, segue.  (...)
Maria João Madeira
Folhas da Cinemateca
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

LE JEU DES VOYAGES 1-4 de Jean-André Fieschi - 07.11.2009


Aquilo chama-se Le Jeu des Voyages . Trata-se de facto de um jogo, em que se pode tirar a carta “Níger” e dar consigo numa piroga sobre esse rio em cheia, atapetado de algas de jade, a carta “Cuny” e seguir o actor até “Le Savon Noir”, a quinta de Civry-la-Forêt onde Anne de Craon e a sua filha Violaine viveram o tempo em que  L’ Annonce faite à Marie de Claudel adquire carne e imagem de cinema. Podemos…          
É um jogo, mas é primeiramente um filme de vinte horas e picos, que se apresenta até ver sob a forma de vinte e sete cassetes. É também um diário, “regra do jogo” como o que Michel Leiris manteve ao longo da vida, e é um romance/folhetim, ou melhor, com os seus reencaminhamentos de um tomo para outro, uma outra Comédie Humaine . A dos últimos anos do séc. XX, tal como se representou por e à volta de um homem: Jean-André Fieschi. Doze anos (de 1987 a 1999) de trabalho, de viagens, de farniente, de buracos negros, de amor e de amizades. (...)
Émile Breton
Cinéma 09 - ed. Leo Scheer
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

L'ANNONCE FAÎTE À MARIE de Alain Cuny - 07.11.2009


(...) tantos temeram a adaptação de Cuny da peça de Claudel, pensando que o actor iria fazer uma obra académica, “teatral”, pomposa e solene. Por isso, desde os anos 60 (quando Cuny apresentou, pela primeira vez, a projecto) aos anos 90 (em que finalmente o realizou) tantas e sucessivas vezes se recusaram a apoiá-lo. Por isso, enorme foi a surpresa quando, concluído o filme, se verificou que este era o contrário de uma adaptação “literal” ou “convencional” e que antes figurava - e figura - como uma das mais fulgurantes  transposições da linguagem teatral na linguagem cinematográfica, do mundo do teatro no mundo do cinema. (...)
João Bénard da Costa
Folhas da Cinemateca
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

SIMONE BARBÈS OU LA VERTU de Marie-Claude Treilhou - 07.11.2009


(...) Como conjugar uma verdade indiscutível na pintura dos sentimentos e das situações com a recusa de uma chantagem à autenticidade? O dispositivo (chamemos-lhe assim) adoptado poderia constituir uma solução. Três partes, mas também três lugares cuja leitura paradoxal não pode negar-se. O filme adiciona, assim, três sequências, três momentos numa noite de Simone Barbès, a “heroína” do filme, incarnada por Ingrid Bourgoin. O primeiro segmento situa-se no hall de um cinema pornográfico, o segundo num bar nocturno de lésbicas, o terceiro no carro de um desconhecido que propõe à jovem levá-la a casa. Três lugares intensamente ligados à realidade (da época, sobretudo, quanto aos dois primeiros) e ao mesmo tempo três lugares “artificiais” pelo facto de condensarem toda uma dimensão teatral, mesmo se esse teatro também faz parte da vida. (...)
Jean-François Rauger
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

TANGO de Zbigniew Rybczynski - 07.11.2009


(...) O filme é constituído por um único plano durante o qual a câmara permanece fixa. No ecrã vemos uma sala de dimensões reduzidas, com 4 aberturas para fora-de-campo (3 portas e 1 janela). Em cena vão entrando personagens: um rapaz vem buscar uma bola que acabou de entrar pela janela. A sua acção dura exactamente 12 segundos e recomeça assim que acaba. Em ciclo. Irá repetir-se 36 vezes. O 37º ciclo terá um final diferente.(...)
As acções apresentam-se como um elenco de gestos prováveis e vulgares no quotidiano de uma sala que aparece como um palco. São, obviamente, gravadas no mesmo espaço mas em tempos diferentes. Aparentam simultaneidade física. O autor parece querer estabelecer uma linha de indecisão palpável entre a ilusão credível de uma cena fotografada, onde se movem personagens reais, e a evidência de que tais personagens nunca se encontram entre si nas suas trajectórias no interior do espaço exíguo: a solidão apesar da multidão, a estranheza apesar dos gestos repetidos e familiares.(...)
Marina Estela Graça
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

EL ÁNGEL EXTERMINADOR de Luis Buñuel - 06.11.2009


(...) O mais estranho de tudo é certamente a fronteira invisível que separa os convivas reunidos no salão, da sala de jantar vazia. É a mesma ribalta que, com uma força inelutável, separa os espectadores do palco. (...)
Jean Breschand
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

HIS NEW JOB de Charles Chaplin - 06.11.2009


(...) Temos duas séries de planos que conservam a memória de uma frontalidade primitiva - “frontalidade”, significando a proximidade com o enquadramento do palco à italiana: um chão, duas paredes, uma de cada lado, um telão em fundo, inexistência de tecto, uma personagem de pé: o todo centrado. Estamos, pois, perante duas salas contíguas, cada uma olhada como um espaço cénico em si. Um pouco como se pedíssemos ao público de um teatro, de cada vez que uma personagem sai pela esquerda ou pela direita, para passar para uma sala contígua para ver a continuação da peça num outro palco. (...)
Jean Breschand
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

DAY OF THE OUTLAW (Homens de Gelo) de André de Toth - 06.11.2009


(...) Os espaços parecem tão vazios no seu interior como no exterior que os rodeia. The Day of the Outlaw é, à partida, um filme sobre o fim das coisas. O destino das personagens parece estar traçado e muito do trabalho do filme, pelo menos no seu início, apresenta-nos isso mesmo. Arrumar o espaço para mostrar os seus limites, introduzindo, sem perder tempo, a ameaça que não tarda a surgir com a invasão do grupo de foragidos liderados pelo capitão Bruhn, um homem ferido mortalmente, com as horas contadas, transportando consigo a memória e a culpa de um massacre, fugindo com os seus mercenários às consequências da justiça  dos soldados do Norte.
O filme de De Toth é construído a partir de um princípio simples e poderoso: o de que não existe tal coisa como um exterior no cinema, na imagem cinematográfica, de que tudo é interior, contido no limite da imagem. (...)
Ricardo Matos Cabo
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

THE FEMALE OF THE SPECIES de David W. Griffith - 06.11.2009

domingo, 1 de novembro de 2009

LES CARABINIERS de Jean-Luc Godard - 05.11.2009


(...) o essencial de Les Carabiniers é a sua encenação da guerra. Sobre a forma alegórica dessa encenação talvez não valha a pena incidir muito: ela é tão inteligente como singularmente transparente (e, na sua progressão, terrivelmente lógica). Mas, à margem da alegoria, Les Carabiniers tem o seu principal golpe de asa na forma como prolonga o seu artificialismo, a sua recusa do naturalismo, num trabalho formal de que se pode dizer ser uma “acção” sobre os “nervos” do espectador - e referimo-nos, claro, à bruitage, à presença constante de ruídos de campo batalha, rajadas de metralhadora e explosões, fundamentais na criação de um ambiente altamente agressivo.
E depois, naturalmente, é preciso frisar que há aqui dois momentos “clássicos” na filmografia godardiana: a cena do cinema, “emulação” da “virgindade” do espectador dos Lumière, e, perto do fim, a colecção de fotografias que foi tudo o que as personagens trouxeram da guerra.
Luís Miguel Oliveira
Folhas da Cinemateca
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

LES AFFICHES EN GOGUETTE de Georges Méliès - 05.11.2009


(...) Em Les Affiches en Goguette temos três planos narrativos, constituídos por três alterações do cenário: os cartazes propriamente ditos; os cartazes animados; a grade de um jardim público por detrás dos cartazes. Não será exagero dizer, sobretudo tratando-se de um filme do primeiro homem de teatro a fazer cinema, que estes três planos são: a cortina; o palco; os bastidores de um teatro. E cada quadrado ou rectângulo onde está um cartaz, num total de sete, é como uma pequena tela de cinema. Além disso, toda a acção também é uma típica cena de teatro de marionetas à francesa, em que o polícia é a eterna vítima do polichinelo. (...)
Antonio Rodrigues
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

LA CHIENNE de Jean Renoir - 05.11.2009

 
(...) Um dos pontos centrais da sua obra [Jean Renoir] nos anos 30 é a tensão entre um fundo naturalista e a teatralização da narrativa (nos anos 50, depois de The River, a teatralização sobrepujou quase por completo os outros aspectos do seu cinema). Temos em La Chienne uma espantosa afirmação disto, quase sob a forma de uma declaração de princípios. O filme é certamente uma obra-prima “realista”, a começar pelo uso do som directo, que enche a banda sonora dos ruídos das ruas de Paris e também por uma multiplicidade de pormenores humanos e de adereços, que transpõem para a tela a realidade da cidade onde a acção se situa. Basta comparar os motoristas de táxi de La Chienne ao de Quatorze Juillet, de René Clair (os de Renoir parecem “verdadeiros”) ou pensar em pormenores visuais, como o plano sobre a espátula que tira o excesso de espuma dos copos de cerveja, para sentirmos o sólido fundo realista, naturalista, de La Chienne. Mas esta obra tão cheia de pormenores realistas (e não apenas pormenores, pois o som directo faz parte da própria estrutura do filme), é enquadrada por imagens de um teatro de marionetas. No plano de abertura, personagens do guignol, que podem ser vistos em quiosques de quase todos os jardins de Paris, apresentam-nos o filme como se apresentassem um espectáculo para crianças, porém com outras palavras: “Não é um drama, nem uma comédia, não há moral e os heróis são pessoas comuns”. Ditas por uma marioneta, estas palavras perdem qualquer ênfase. E o último plano do filme mostra-nos a cortina do teatro de marionetas que se fecha. Em suma, assistimos a uma espécie de espectáculo de teatro de títeres e ao mesmo tempo a um filme “realista”, que proclama nos seus planos de abertura e de conclusão que o que vamos ver é teatro, que não tem nada a ver com a “realidade”: “o espectáculo vai começar”.
Antonio Rodrigues
Folhas da Cinemateca
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

PASSEIO COM JOHNNY GUITAR de João César Monteiro - 05.11.2009

sábado, 31 de outubro de 2009

A COMÉDIA DE DEUS de João César Monteiro - 04.11.2009


(...) Se a essência do teatro está na unicidade do acto, na sua absoluta singularidade, não reprodutível, então pode ser chamado teatral um cinema que, no momento da sua realização, quereria encontrar essa intensidade do acto, essa temporalidade do “palco” onde os gestos e as palavras se arriscam no espaço aberto do instante único. A necessidade do plano-sequência deriva dessa mística do acto, do seu ter-lugar sem repetição, que proíbe qualquer corte. A tensão cinema-teatro, é a tensão que, no “palco”, intensifica o encontro, o cara-a-cara entre um acto elevado ao nível do rito, da cerimónia, e uma câmara que o deve registar, fixar, e não terá uma segunda oportunidade. Tensão eminentemente erótica e sagrada, que revela em Monteiro, sob o ridículo permanente dos gestos e das palavras do catolicismo, um desejo místico do êxtase. O que, do teatro, vem então para o cinema, não para o distrair dos seus poderes próprios, mas pelo contrário para os excitar, os realçar, não são tanto maneiras de representar, apriorismos estéticos, artifícios ou truques, mas uma exigência que vem de longe, de uma muito longínqua origem sagrada do rito teatral: uma separação, uma ascese que tende para o sublime do instante.
Cyril Neyrat
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009

MERLIN de Adolfo Arrieta - 04.11.2009


(...) Se a influência de Cocteau é, evidentemente, flagrante, pois que Arrieta adapta uma das suas peças mais estranhas e discutidas, que teve inúmeros problemas para ser montada em palco (o próprio Jouvet desistiu) quem conheça bem a obra de César Monteiro não pode deixar de estabelecer paralelos. Lembrei-me dele logo no início, no sublime genérico com o céu estrelado em fundo e em que uma mão, ora vinda da direita, ora vinda da esquerda, nos estende os cartões encarnados em que estão escritos à mão os nomes dos actores. As duas cores fundamentais desta obra (o azul e o encarnado) impõem-se de imediato como de imediato se impõe essa misteriosa espiral de fumo azul que, mais tarde, identificaremos com o Graal. (...)
João Bénard da Costa
in catálogo "cinematografia – teatralidade 1"
Lisboa, Outubro de 2009