Mangini montou e construiu o seu filme como uma experiência da morte, no sentido próprio: uma travessia da morte, ultrapassada pela animação progressiva do canto e da dança.(...) A morte reina, como o testemunha o belo plano tipo Vampyr, visão do cadáver sobre as carpideiras debruçadas sobre ele. (...) Os gestos e o canto intensificam-se até à libertação do grito, lamento em êxtase sobre o cadáver. (...) Não querendo captar ao vivo um verdadeiro luto, Mangini conseguiu, refazendo o ritual, converter o teatro colectivo do luto num cântico cinematográfico. Enquadramentos, montagem, o cinema torna-se música, lamento fúnebre de um mundo em vias de desaparecer. (...)
Ao canto das mulheres sobrepõe-se a recitação das cinco estrofes do texto composto por Pasolini e recitado por Lilla Brignone. A colaboração neste filme do poeta e futuro cineasta parece evidente. Pasolini sempre se disse ateu mas profundamente religioso, no sentido em que a sua visão do mundo é “épico-religiosa”. Um rosto, um gesto, o canto de um pássaro: a realidade aparece a Pasolini como sagrada. Um filme sobre a sobrevivência de um ritual arcaico no seio de uma sociedade camponesa vinha de encontro às suas primeiras preocupações. (...) Compondo o seu próprio cântico a partir de cânticos gregos de Salento, Pasolini idealiza a sua mãe entre as carpideiras de Martano, chora com ela, como tantas vezes o fez, a morte prematura de Guido. (...)
Três anos depois de ter cantado a dor de uma mãe de Salento, Pasolini trabalha este tema numa longa-metragem, Mamma Roma, o seu segundo filme. Nessa época, reivindica a natureza religiosa do seu cinema, desde que não haja mal-entendidos sobre a natureza dessa religião. Há algo de profundamente ritual na encenação de Pasolini, na sua relação cinematográfica com o mundo, a realidade. As suas duas primeiras longas-metragens, Accattone e Mamma Roma, pelo seu ritmo lancinante, a sua musicalidade repetitiva, têm algo de ritual sagrado. A proximidade com Stendali evidencia a natureza do ritual que é Mamma Roma: um lamento - ritual fúnebre, cântico fúnebre.(...)
Deste modo, o cinema eleva-se à altura do ritual arcaico de Stendali: os sinos anunciam a morte, mas ainda soam. O lamento fúnebre não se contenta em chorar a morte, desafia-a, confronta-a com uma figura - uma forma, um rosto - para que a experimente, isto é, atravessa-a. Todo o lamento é também um cântico de vida.
Cyril Neyrat
Paris, Outubro de 2012
in catálogo "cinematografia - musicalidade 2"