(...) A Rapariga é uma personagem fulcral, apesar de não dizer uma única palavra ao longo de todo o filme, e nem sequer ficarmos a saber o seu nome. Por um lado, ela preenche uma parte essencial do universo afectivo de Luciano. Por outro lado, é através dela que acontece o cruzamento entre o mundo da ficção literária (em que existe Luciano) e o mundo da vida real (em que existe o Professor).
Mas o cruzamento fundamental entre os dois mundos materializa-se na carta escrita por Luciano, da qual a Rapariga não chegará a ter conhecimento, e que, por um acaso, será finalmente lida pelo Professor. É uma carta na qual, em grande parte, se repetem palavras já ouvidas no monólogo interior de Luciano no primeiro encontro com a Rapariga, no comboio. Ocorre-me um símil entre esta carta e a echarpe de Jennie no assombroso filme de William Dieterle The Portrait of Jennie (1948). Tal como neste último a echarpe encontrada nos rochedos do mar tempestuoso em que Jennie se afogara é uma prova de que ela, a mulher-aparição, de facto existiu, a carta de Luciano testemunha que ele assumiu uma existência que extravasa a da personagem de ficção literária. É certamente por isso que, na penúltima sequência do filme, quando Alberto caminha à beira mar, vemos fugidiamente Luciano, de costas, olhando o mar.
Quando o Professor começa a ler a carta, é a voz de Luciano que ouvimos. Mas por duas vezes essa voz alterna brevemente com a de Alberto. E é importante notar o profundo contraste entre as duas vozes. Dito por Alberto, o texto soa sombrio na sua voz áspera. Mas, na voz jovem e macia de Luciano, esse mesmo texto, sem deixar de estar marcado pela melancolia, torna-se amável no sentido literal da palavra.
Há apenas duas personagens a que não está associada qualquer música: Cipriano e o Professor. Quanto ao primeiro, posso interpretar essa falta como consequência de ele permanecer como uma personagem, de algum modo, marginal em relação ao cerne da acção.
É completamente diferente o caso do Professor. No início da sequência em que o vemos no seu gabinete, ouvimos ainda o resto de um fragmento de Mozart tocado por Isabel numa sequência anterior. Mas, com essa breve excepção, não há música associada à personagem. Não há lugar para isso no longo monólogo que constitui a sua intervenção esssencial. Trata-se de um plano “incrível”. Um plano fixo com duração de quase sete minutos, brilhantemente (eu diria mesmo heroicamente) suportado por Duarte de Almeida e Sara Marques. Estamos num café. Sentada ao balcão, e vista de perfil, a Rapariga limita-se a olhar em frente. Enquanto o Professor, mais distante, sentado a uma mesa, lhe fala sem saber se está a ser ouvido. E aqui o actor Duarte de Almeida é transcendido pelo seu verdadeiro ego, João Bénard da Costa. É um monólogo denso de referências culturais, não ditas como quem despeja uma lição de cultura, mas que fluem com naturalidade. Com aquela naturalidade e aquela elegância a que Bénard da Costa, ao longo de anos, nos habituou nas suas crónicas magníficas. Um quadro de Van Eyck, Jean-Paul, os “encontros automáticos”, a Imitação de Cristo, os acasos (que “são a única coisa que não acontece por acaso”)… Este monólogo do Professor não tem música. Mas está impregnado de musicalidade nas palavras e nos conceitos.(...)
Quando o Professor começa a ler a carta, é a voz de Luciano que ouvimos. Mas por duas vezes essa voz alterna brevemente com a de Alberto. E é importante notar o profundo contraste entre as duas vozes. Dito por Alberto, o texto soa sombrio na sua voz áspera. Mas, na voz jovem e macia de Luciano, esse mesmo texto, sem deixar de estar marcado pela melancolia, torna-se amável no sentido literal da palavra.
Há apenas duas personagens a que não está associada qualquer música: Cipriano e o Professor. Quanto ao primeiro, posso interpretar essa falta como consequência de ele permanecer como uma personagem, de algum modo, marginal em relação ao cerne da acção.
É completamente diferente o caso do Professor. No início da sequência em que o vemos no seu gabinete, ouvimos ainda o resto de um fragmento de Mozart tocado por Isabel numa sequência anterior. Mas, com essa breve excepção, não há música associada à personagem. Não há lugar para isso no longo monólogo que constitui a sua intervenção esssencial. Trata-se de um plano “incrível”. Um plano fixo com duração de quase sete minutos, brilhantemente (eu diria mesmo heroicamente) suportado por Duarte de Almeida e Sara Marques. Estamos num café. Sentada ao balcão, e vista de perfil, a Rapariga limita-se a olhar em frente. Enquanto o Professor, mais distante, sentado a uma mesa, lhe fala sem saber se está a ser ouvido. E aqui o actor Duarte de Almeida é transcendido pelo seu verdadeiro ego, João Bénard da Costa. É um monólogo denso de referências culturais, não ditas como quem despeja uma lição de cultura, mas que fluem com naturalidade. Com aquela naturalidade e aquela elegância a que Bénard da Costa, ao longo de anos, nos habituou nas suas crónicas magníficas. Um quadro de Van Eyck, Jean-Paul, os “encontros automáticos”, a Imitação de Cristo, os acasos (que “são a única coisa que não acontece por acaso”)… Este monólogo do Professor não tem música. Mas está impregnado de musicalidade nas palavras e nos conceitos.(...)
Carlos de Pontes Leça
Lisboa, Setembro de 2012
in catálogo "cinematografia - musicalidade 2"