(...) “O Inconsolável” é um diálogo que se desenrola entre Orfeu, que acaba de regressar dos infernos, e Baca, que o questiona sobre o seu estado de espírito e seu amor por Eurídice. Este diálogo apresenta-nos uma versão inesperada do mito de Orfeu e Eurídice, em que Orfeu, na viagem de regresso do mundo dos mortos para onde partiu para resgatar Eurídice, decide romper voluntariamente com condição que a faria ressuscitar, devolvendo-a ao “reino do nada”. No livro e no filme de Jean-Marie Straub, em contraste com um Orfeu enamorado e profundamente infeliz, encontramos um homem lúcido, que prefere não trazer Eurídice para o mundo dos vivos face à inevitabilidade de esta ter de morrer uma segunda vez, uma vez que não há consolação possível para a morte. (...)
O modo como Straub filma [os] dois actores (...) é semelhante ao modo como filmara em Quei Loro Incontri e noutros trabalhos posteriores (...). O décor natural das colinas de Buti, na Toscânia, acolhe-os nas vestes “modernas” e nas suas poses predeterminadas, enquadradas de modo preciso e rigoroso. Impulsionando mais uma vez a colisão de temporalidades distintas (o presente dos actores e da natureza italiana é confrontado com o tempo mítico das suas personagens), Straub preserva e desenvolve aqui o essencial do seu cinema: a fidelidade e a importância do texto que quase é cantado por este par impressivo; a materialidade do real, expressa pelas manifestações naturais e pelos jogos de luz e de sombra que ancoram as imagens no mundo; a preservação de quadros definidos e de um número limitado de posições de câmara que permitem que, como escreveu Pavese no seu “prefácio” aos “Diálogos”, um “mesmo objecto” se revele num dado momento e nos pareça “miraculoso”. (...)
Joana Ascensão
in "Folhas da Cinemateca"