sábado, 3 de novembro de 2012

LANCELOT DU LAC de Robert Bresson - 07.11.2012 - 22h00


Contemplar Lancelot du Lac é também ouvir, não sem uma espécie de espanto transido, atiçado pelos cortes e pelo silêncio, essa matança e esse canto estreito e pungente, esse canto de entranhas. Este eleva-se, entre duas verdadeiras carnificinas como o sopro impressionante, muito próximo, de uma longa expiração intensa, aguda e afiada - semelhante a uma oração fúnebre, quase funesta - e centraliza-se num torneio sangrento. (...)
Deste “canto das entranhas” que a “taça lendária” recolhe, evoquemos os instrumentos - e a possível partitura.
A base, para começar, é o silêncio - como sempre muito presente e muitas vezes oprimente na obra de Bresson (pensemos nos roubos cruciais de Picpocket, 1959, ou na vigilância inicial de Mouchette, 1967). Mas, como o próprio cineasta escreveu nas suas Notes sur le cinématographe: “O silêncio é necessário à música, mas não faz parte da música. A música apoia-se nele”. Isto faz pensar no termo “pauta” musical. Como o seu nome indica, sem ser música, ela apoia a partitura e condiciona a musicalidade: a frequência, as harmonias, os temas e as variações. (...)
Todavia, qualquer silêncio, inclusive este, permanece carregado de ruídos que o obcecam de uma forma mais ou menos suave, discreta e mais ou menos confusa. Aqui, como nos outros filmes de Bresson, estes sons são, pelo contrário, muito distintos - também eles salientes. É este relevo na “pauta do silêncio” que parece conferir aos seus timbres particulares valores de notas ou, melhor dizendo, de percussões a fim de criar uma musicalidade cinematográfica própria de cada filme e de cada cena que, em segredo, se harmoniza com a força do drama, da montagem elíptica e das imagens.
Assim, o “fosso de orquestra” do filme é por isso imediatamente reconhecível na medida, pelo menos, em que repercute como centro aparente e evidente, mas também como cobertura funesta que devasta e que disfarça mais do que revela a verdade dos corações: seria o grande grupo das armas - todas elas lanças e lâminas: as espadas antes de mais, os punhais, os gládios, as flechas e as lanças do torneio na cena central. Estas pontas implacáveis batem nas armaduras como fariam as batutas em címbalos da guerra - para as fazer ressoar, mas também para as perfurar, para as rasgar, para fazer brotar delas a carne magoada ou o jorro de sangue, a exalação final.(...)
Esta tonalidade, para atingir e dar a sentir este nó lendário tingido de misticismo, começa por se manifestar através de outros sons muito concretos, importantes e recorrentes: outros timbres ou “instrumentos” que vão acompanhar o “fosso de orquestra” das armas e das armaduras, com efeitos de rima. A partir deste prelúdio, trata-se dos ruídos de passos - mais semelhantes a murmúrios - do tilintar das armaduras, dos gemidos, do crepitar do fogo, de um crocitar recorrente de corvo, sempre invisível e particularmente acentuado e, principalmente, dos ruídos de cavalos .(...)
Quem diz cavalaria, diz, de facto, cavalos e Bresson não esquece verdadeiramente esta presença fundamental: desde o início e até ao fim, insiste nos sons dos seus cascos, da sua respiração, dos seus relinchos, que se harmonizam sem se confundir com a espantosa montagem visual das suas silhuetas, dos seus flancos, das suas deslocações e, sobretudo e de forma impressionante, com a rima visual dos seus olhos exorbitados, como que aterrorizados pelo espectáculo de que, sem qualquer culpa, são portadores - mas este concerto de ressonâncias reina, sobretudo, como uma dissonância: raros são os momentos de conjunções entre imagens e sons. (...)

Florent Guézenguar
Outubro de 2012
in catálogo "cinematografia - musicalidade 2"