(...) há que começar por atentar na própria “Deusa”, Doyamoyee, “vítima que se deixa passar para o lado que a condena”, e isso não tanto pela passagem em si mesma mas pelo facto de esta não relevar de uma simples submissão: Doyamoyee duvida e (...) essa dúvida não tem retorno, deixando um primeiro sinal de perturbação de toda a linearidade crítica, não parecendo haver qualquer intenção de esconder a ambiguidade da atitude (Ray deixa em aberto se se trata de “adequação à época” ou algo mais profundo e intemporal). Em segundo lugar, há que pensar na personagem do marido, Umaprasad, opositor religioso (há referência à sua filiação cristã) e alternativa moderna à geração dos “zamindars”: como compreender a enorme incapacidade que o marca a ele, e, mais do que a ele, ao mundo dele (professor incluído), e que o torna “inexplicavelmente” derrotado, mesmo se, dir-se-ia, não ferido pela dúvida…? Também neste ponto Ray tem, ainda, uma caução de época, além de um subterfúgio pragmático, aos quais, aliás, se referiu: “Devi passa-se numa época em que o racionalismo é uma filosofia comparativamente nova, ainda sem raízes profundas em Bengala. Os que a adoptam demonstram com frequência falta de coragem”...; além disso, “se Umaprasad não se tivesse submetido às implorações de Doya não tinha chegado a haver história”. Mais uma vez, porém, a resposta não chega para esgotar o assunto. Mesmo que, de facto, não queiramos imputar ao personagem uma dúvida real que, no seu caso, não parece existir, a fraqueza dele (e do seu irmão...) perante a intensidade do fenómeno é, em si mesma, perturbadora. Tanto que, de resto, quase se poderá perguntar se não terá sido essa intensidade conferida ao fenómeno criticado – mais do que a dureza da crítica - o “pecado” maior que esteve afinal na origem das acusações ao autor.(...)
José Manuel Costa
Folhas da Cinemateca